Patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias. Um projeto vitorioso do instituto dos advogados brasileiros.

AutorMelhim Namem Chalhub
CargoMembro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros. Advogado e Professor no Rio de Janeiro.
1. Nota introdutória

Na sociedade contemporânea são inúmeras as modalidades de negócio em que a administração de ativos é confiada a terceiros, nas quais o titular de determinados bens ou direitos transfere sua propriedade a administradores profissionais, para que estes os administrem em benefício do transmitente. São também freqüentes os empréstimos em que o bem objeto da garantia é transmitido pelo devedor ao credor.

Além disso, é usual a afetação de bens ou direitos para fins de limitação de responsabilidade na atividade empresarial.

Situação das mais freqüentes é a diversificação e multiplicação dos meios de captação de recursos do público, envolvendo milhões de interessados, sobretudo pequenos e médios investidores e poupadores, que confiam a aplicação dos seus recursos a empresas especializadas. Situação igualmente comum é a participação de investidores em negócios específicos de determinada empresa; nesses casos, não se justifica que aquele que investiu em um determinado negócio se exponha aos riscos do patrimônio geral da empresa, e para evitar esse risco cria-se um patrimônio autônomo, de modo que a responsabilidade dos participantes fique limitada exclusivamente aos riscos do negócio objeto do investimento específico.

No direito positivo brasileiro os exemplos mais comuns são a subscrição de cotas dos fundos de investimento, a alienação fiduciária em garantia e a afetação patrimonial do acervo das incorporações imobiliárias.

Em qualquer dessas situações, os direitos patrimoniais relacionados ao negócio devem ser tutelados de maneira peculiar, como meio de delimitação de riscos, para proteção dos beneficiários e segurança da relação jurídica.

1.1. A afetação patrimonial

A afetação patrimonial1 atende a essa necessidade, na medida em que possibilita a atribuição ou a reserva de certos bens (i) a uma destinação exclusiva, vedada outra destinação, ou (ii) a um grupo de credores. Os credores vinculados a um patrimônio de afetação têm ação somente sobre bens dele integrantes, com exclusão dos outros bens do patrimônio do devedor, ou têm preferência sobre os bens afetados; de outra parte, os bens afetados ficam excluídos de excussão por parte dos credores gerais do sujeito, isto é, os credores não vinculados ao patrimônio separado2.

O "patrimônio de afetação" constitui uma universalidade e, portanto, responde pelas obrigações contraídas para cumprimento da finalidade para a qual tiver sido estruturado ou que a esta estejam vinculadas; só ele responde pelas obrigações relativas a essa massa e ele responde somente por essas obrigações, não por obrigações que estejam fora dessa esfera patrimonial.

A constituição de massas patrimoniais separadas só é admitida nas hipóteses explicitamente autorizadas por lei e com as limitações que a lei prescrever, pois a separação de certos bens do patrimônio de uma pessoa pode, evidentemente, implicar redução da garantia geral dos credores; além disso, a separação patrimonial submete-se às mesmas restrições impostas à alienação ou oneração de bens, em geral, sendo ineficaz e sem efeito a separação patrimonial que configure fraude de execução ou anulável aquela que se fizer em fraude contra credores.

De outra parte, a formação desses patrimônios separados só se torna plenamente eficaz se o tratamento especial atribuído à massa patrimonial segregada for oponível a terceiros, daí porque é essencial sejam esses atos dados à publicidade.

O patrimônio de afetação tem ativo e passivo próprios, podendo ser formado tanto pelos bens, direitos e obrigações com que tiver sido originalmente formado, como, também, pelos frutos e encargos advindos da gestão desse patrimônio e pelos encargos que eventualmente venham a ser imputados a ele.

É princípio comum aos patrimônios de afetação que, após cumprida sua missão, os bens afetados, ou os remanescentes, retornam ao patrimônio geral do titular, ressalvada eventual destinação específica definida em conformidade com as peculiaridades de cada caso, pois o modo de extinção da afetação pode variar caso a caso.

2. Precedentes legislativos no direito comparado Breve notícia

A afetação patrimonial é fator de estímulo aos investimentos privados, dada a segurança jurídica decorrente da limitação de riscos que o mecanismo proporciona.

Por isso mesmo, espraiou-se por todos os continentes, seja na forma de trust, seja numa versão moderna da fidúcia, estando presente na Austrália, Escócia, África do Sul, Itália, Portugal, Espanha, Luxemburgo, China, Japão, Líbano, Dubai, Quebec e toda a América espanhola.

Na Itália, por exemplo, introduziram-se importantes alterações no direito societário3, pelas quais se permite que as empresas separem do seu patrimônio determinados bens ou direitos e com eles constituam um ou mais patrimônios de afetação, cada um deles destinado a um negócio específico; os patrimônios de afetação, como se sabe, só respondem pelas suas próprias dívidas e obrigações, na medida em que se mantêm incomunicáveis em relação ao patrimônio geral da empresa e, portanto, não são atingidos por eventuais desequilíbrios da empresa.

Por esse modo, individualiza-se uma parte do patrimônio geral da empresa, efetiva-se sua separação jurídica desse patrimônio e se destina essa parcela do patrimônio a uma operação econômica específica, desvinculada da atividade geral da empresa. As obrigações contraídas para realização dessa operação serão satisfeitas com o ativo desse patrimônio separado, sendo certo, ademais, que o ativo desse patrimônio não responde pelas dívidas e obrigações relacionadas ao patrimônio geral da empresa. Assim, os credores do patrimônio geral da empresa não podem buscar a satisfação dos seus créditos no ativo do patrimônio separado.

O mecanismo torna possível a limitação de responsabilidade da empresa e torna mais atraente o investimento de terceiros, possibilitando à empresa emitir obrigações relacionadas exclusivamente ao fim específico para o qual tiver sido criado o patrimônio de afetação, circunstância que, ademais, importa em redução do custo de monitoramento dos créditos dos investidores, na medida em que estes não precisam controlar o desempenho de toda a empresa, mas somente os negócios relacionados ao patrimônio separado. Em caso de financiamento, os frutos do negócio específico podem ser destinados total ou parcialmente ao resgate da dívida decorrente da operação financeira.

Efetivamente, por sua incomparável eficácia em matéria de limitação de riscos e segurança jurídica, a afetação patrimonial viabiliza a realização das mais diversificadas espécies de negócios e possibilita sua multiplicação, revestindo de especial segurança a captação e a aplicação de recursos do público.

Na regulamentação instituída pelos arts. 2.447-bis a 2.447-decies do Código Civil italiano a afetação é uma faculdade das empresas; é o interesse particular da empresa e dos seus financiadores que determina a deliberação de separar os riscos de determinados negócios dos riscos da generalidade dos negócios da empresa.

Além dessa segregação patrimonial facultativa, há no direito italiano outros negócios que, por envolverem a captação de recursos no mercado de capitais e a economia popular, são submetidos compulsoriamente à afetação, como são os casos dos fundos de investimento4 e da securitização de créditos5.

Iniciativa semelhante foi adotada pelo direito francês, com a recente regulamentação da fidúcia de forma ampla e sistemática. Trata-se da regulamentação instituída pelos arts. 2.011 a 2.030 no Código Civil6, que estabelecem os requisitos para constituição de relações fiduciárias e da propriedade fiduciária, bem como definem a separação patrimonial dos bens, direitos e obrigações vinculados a tais relações jurídicas.

3. Breve registro sobre o direito positivo brasileiro

O direito positivo brasileiro vem procurando atender à necessidade de regulamentação da segregação patrimonial, embora de maneira tímida.

Aqui, regulamentou-se a propriedade fiduciária, para fins de garantia e de administração, por meio da qual se opera a afetação do bem transmitido numa relação fiduciária (Leis n°s 4.728/65, 8.668/93 e 9.514/97, entre outras), o regime fiduciário no processo de securitização de créditos imobiliários, a cessão fiduciária de créditos (Lei n° 9.514/97), a afetação patrimonial do acervo de incorporações imobiliárias (Lei n° 10.931/2004), além de outras situações específicas.

A legislação brasileira, entretanto, contém graves distorções conceituais, que prejudicam ou até inibem a aplicação do mecanismo da afetação, ora violando os direitos dos consumidores, ora desestimulando investimentos da iniciativa privada.

A par de determinados casos específicos, a questão de fundo da política legislativa é o tratamento assistemático, inconsistente e errático da matéria, fruto da falta de enfoque estratégico, que transmite indesejável insegurança jurídica ao ambiente empresarial e consumerista. É necessário que se dê tratamento sistemático à matéria, imprimindo-se rigor...

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