Os crimes contra a saúde pública e a segurança alimentar

AutorFlávia Loureiro
CargoMestre em Ciências Jurídico-Criminais. Assistente na Escola de Direito da Universidade do Minho

Os crimes contra a saúde pública e a segurança alimentar 1

Assessora do Ministro da Justiça

No âmbito de uma Conferência Nacional de Segurança Alimentar, a discussão a respeito dos crimes contra a saúde pública e a segurança alimentar não pode ser senão, pela própria natureza das coisas, última e parcelar2. A isso se vota, aliás, todo o direito penal, como devemos começar por referir, pois que a utilização do instrumentarium penal deve ser feita com parcimónia, ao contrário do que usualmente se vê nos nossos dias, onde a cada questão social, organizacional ou económica se responde – ou pretende responder – com a criação de mais um crime, ou de um conjunto deles.

De facto, todos temos a percepção, mais ou menos racionalizada, de que ao desrespeito por uma imposição legal (ao menos por ela, já não extrapolando para comportamentos que julgamos como anti-éticos) deve corresponder um qualquer tipo de ilícito, uma sanção que a mesma lei há-de impor. Definir qual a categoria de ilícito que teremos pela frente, qual a natureza da sanção jurídica que aplicaremos àquele caso concreto é coisa já inteiramente diferente, muito mais problemática e a requerer a ponderação de diversificados elementos, jurídicos e não só3.

Há, por isso, se quisermos, uma graduação de ilícitos, uma pirâmide de regimes sancionatórios, da qual o direito penal é somente o topo, mais pequeno e contraído. Aquilo a que chamamos o princípio da ultima ratio penal impõe que este ramo do direito só intervenha quanto a bens jurídicos essenciais de uma determinada comunidade e, ainda que o sejam, somente se os outros ramos do direito – nomeadamente, os outros campos do ilícito – não forem suficientes para prover uma tutela adequada e eficiente a esses valores fundamentais4.

Deste modo, e muito embora resulte mais ou menos intuitivo para todos que a saúde pública e a segurança alimentar são bens relevantes da nossa comunidade, a merecer, por isso, tutela penal, temos metodologicamente que perguntar-nos, desde logo, se assim é. E, ainda que a resposta a esta questão seja positiva, não nos basta isso para defender ou sustentar a intervenção do direito penal. Teremos, pois, que aferir da carência dessa tutela, da necessidade de actuação deste ramo do direito face à insuficiência de resposta do demais ordenamento jurídico.

É, pois, basilar começarmos por averiguar junto da Constituição da República se merecem estes bens ponderação constitucional, fonte onde, afinal, devemos beber a referência para os bens jurídico-penais5. Ora, de acordo com o art. 60.° da Constituição da República Portuguesa (CRP), os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos, vindo esclarecer o art. 81.°, na sua alínea i), que incumbe prioritariamente ao Estado, no âmbito económico e social, garantir a defesa dos direitos e os interesses dos consumidores, e sublinhando o art. 99.°, alínea e), que é objectivo da política comercial a protecção dos consumidores6.

Podemos concluir, nestes termos, que a própria Constituição reflecte a percepção da importância da protecção da qualidade dos bens e serviços prestados ao consumidor, designadamente quanto à sua saúde e segurança. Ao afirmá-lo, o legislador constitucional não está, com isso, a impor directamente a obrigação de uma tutela penal dessas realidades7, mas está a chamar a atenção do legislador ordinário para a necessidade de prestar uma particular atenção a estas matérias, fazendo intervir o direito penal se os problemas que se suscitem no quotidiano não puderem ser convenientemente solucionados através do recurso aos outros ramos do direito.

Ora, no caso das matérias de saúde pública e da saúde alimentar, a esmagadora maioria da legislação que as rege nada tem de criminal, como, aliás, deverá suceder sempre, sendo que, mesmo quando estamos face a comportamentos ilícitos, a grande parte deles se move dentro do direito contra-ordenacional, dando origem, portanto, à aplicação de sanções administrativas8. Com toda esta grande mancha de actuação em termos de saúde pública e segurança alimentar, de protecção dos consumidores, nada tem que ver o direito penal, reservando-se, como é da sua essência, para as mais graves acções delituosas que afectam a nossa sociedade.

De entre estes comportamentos que podem afectar os direitos dos consumidores à qualidade dos bens e serviços consumidos, alguns deles, todavia, podem ser de tal forma gravosos, de tal maneira perigosos ou causadores de danos tão sérios, que não pode o braço armado do nosso sistema jurídico manter-se arredado dessas situações. Em alguns casos, pois, também o direito penal é chamado à protecção destes direitos à saúde pública e à segurança alimentar. Mas, insiste-se, apenas nos casos mais graves que possam afectar bens fundamentais da nossa comunidade.

Assim sendo, temos, desde logo, dois grandes instrumentos a ter em conta neste âmbito: por um lado, o Decreto-Lei n.° 28/84, de 20 de Janeiro, sucessivamente alterado nas suas duas décadas e meia de existência, mas que ainda hoje se mantém como o diploma especialmente vocacionado para regular as infracções anti-económicas e contra a saúde pública; por outro, o próprio Código Penal (CP), aprovado pelo Decreto-Lei n.° 400/82, de 23 de Setembro, também ele por diversas vezes modificado, especificamente o seu actual art. 282.°.

Começando por algumas considerações gerais a respeito das incriminações previstas nestes dois diplomas, podemos dizer, como primeiro elemento significativo, que apenas um dos tipos legais está declaradamente pensado como crime contra a saúde pública, o abate clandestino, previsto no art. 22.° do Decreto-Lei n.° 28/849. Efectivamente, é a própria epígrafe da subsecção, que contém apenas um preceito10, que delimita o seu âmbito, catalogando o comportamento de abate de animais para consumo público a) sem a competente inspecção sanitária, b) fora de matadouros ou recintos a esse efeito destinados pelas entidades competentes, ou c) de espécies não habitualmente usadas para alimentação humana11, ou a aquisição, para consumo público, de carne dos animais abatidos naqueles termos ou de produtos com ela fabricados12, como um13 crime contra a saúde pública.

Não quer isso dizer, todavia, que apenas este tipo legal possa tutelar a saúde pública, uma vez que, neste sentido de salvaguarda dos direitos do consumidor, também o art. 282.° do CP pode realizar essa protecção – não sendo esse, todavia, o seu escopo fundamental. Na verdade, e introduzindo já aquilo que depois desenvolveremos a respeito do art. 282.° do CP, este preceito não visa especificamente tutelar a saúde pública, mas antes a vida e integridade física14.

Indirectamente, todavia, a protecção desses bens jurídicos através do tipo incriminador em causa, tutela ou, pelo menos, pode tutelar igualmente a saúde pública, Na verdade, ao prevenir ou perseguir a corrupção de substâncias alimentares ou medicinais que coloquem em perigo a vida ou a integridade física, estamos, simultaneamente, a tutelar a saúde pública.

Ainda assim, no entanto, o art. 22.° do Decreto-Lei n.° 28/84 é o único tipo incriminador especialmente destinado a este efeito, aquele que está vocacionado para tutelar directa e inquestionavelmente a saúde pública. Apenas ele tem por vocação primeira a protecção desse bem jurídico.

Numa segunda nota preambular, devemos também sublinhar que, quanto à tutela da segurança alimentar (o outro vector desta reflexão, que especialmente nos interessa nesta sede), vigoram entre nós os preceitos constantes quer do referido art. 282.° do CP quer do art. 24.° do Decreto-Lei n.° 28/84, epigrafado de crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares. Podemos ainda acrescentar a esse conjunto, numa visão mais alargada de saúde pública, as normas constantes quer do art. 281.° do CP – perigo relativo a animais ou vegetais – quer do art. 25.° do Decreto-Lei n.° 28/84 – crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de alimentos destinados a animais. Situam-se estas já, porém, fora daquele a que poderemos talvez chamar o núcleo essencial de tutela da segurança alimentar, uma vez que não se destinam a proteger a segurança alimentar humana, mas têm como campo de aplicação a segurança alimentar animal.

Traçado, pois, o cenário dentro do qual nos moveremos, ainda que apenas muito amplamente, tentemos agora concretizar um pouco mais esta tutela, compreendendo qual o seu alcance e objectivo, quando poderá entrar em jogo e face a quais comportamentos. Seguiremos para isso, quer por facilidade de exposição quer porque se nos afigura materialmente mais coerente, a ordem pela qual apresentámos os diferentes tipos legais.

Olhemos, assim, em primeiro lugar, para o crime de abate clandestino. O objectivo do tipo legal contido no art. 22.° do Decreto-Lei n.° 28/84 é, desde logo, como verdadeiro crime contra a saúde pública, a protecção da saúde de um número indeterminado de pessoas, melhor, a prevenção do perigo para a saúde dos consumidores, colectiva e abstractamente considerados, sem necessidade de individualização15.

Na verdade, sendo um crime de perigo abstracto – o perigo não é elemento constitutivo do tipo mas apenas motivação do legislador16 –, o que se pretende com a norma é prevenir o risco para a saúde dos cidadãos provocado pelo abate de animais que, destinando-se ao consumo público, não cumpra as devidas regras de abate. Seja porque tal operação se faz fora dos locais destinados ao efeito, seja porque não se realiza a necessária inspecção sanitária, seja porque se utilizam espécies habitualmente não usadas nesse consumo, ou o perigo proveniente da aquisição, igualmente dirigida ao consumo de outrem, de carne que haja sido abatida nesses termos.

Resulta claro, portanto – o que, aliás, é próprio de tipos legais...

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