Algumas notas sobre a responsabilidade disciplinar, civil, tributária e penal dos revisores oficiais de contas

AutorTiago Caiado Guerreiro
Cargo do AutorAdvogado
Páginas55-80

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1. Breve introdução ao tema

A questão da responsabilidade dos Revisores Oficiais de Contas (doravante "Revisores") tem sido, nos últimos tempos, repetidamente suscitada, nomeadamente ao nível dos meios de comunicação social. Sendo uma problemática antiga, assumiu nova relevância com casos como o da Enron, WorldCom, Xerox, Tyco, entre outras.

A possibilidade e a efectiva responsabilização dos Revisores, não só ao nível civil como também ao nível criminal, muito para além dos limites que se pensava existirem, criou na consciência da classe um receio fundado na incerteza e na falta de clarificação do efectivo alcance da responsabilidade dos Revisores.

Por outro lado, é cada vez mais real o "perigo" enfrentado pelos Revisores de verem o seu património pessoal afectado, para além dos montantes dos seguros de responsabilidade civil que estão obrigados a celebrar.

Acresce que, sempre terá de se concordar, uma responsabilidade civil por parte dos Revisores e Auditores é certamente indispensável para a compensação legítima dos lesados por culpa ou negligência na prestação de serviços por parte daqueles.

Mas que dizer da responsabilidade tributária e penal?Page 56

E como salvaguardar a posição dos Revisores e os Auditores que, acima de tudo, desempenham uma função de prossecução do interesse público?

A revisão oficial de contas há muito que ultrapassou o limiar da pequena empresa, onde o Revisor é confrontado com irregularidades facilmente detectáveis. Hoje em dia, a profissão representa um papel cada vez mais relevante na credibilização dos grandes grupos empresariais, junto dos investidores internacionais, ultrapassando em larga escala o nível nacional e microeconómico. Mas, em contrapartida, o Revisor vê--se confrontado com esquemas fraudulentos e situações de corrupção que desafiam a auditoria mais apurada, principalmente se a mesma se limita a obedecer aos requisitos e directrizes mínimos do exercício da actividade.

Acresce que, embora já largamente abordado, o problema do ex-pectation gap não foi, nem será tão cedo, claramente enfrentado.

Cada vez são mais os utilizadores da informação contabilística certificada, sejam os accionistas e investidores, sejam as instituições de crédito, fornecedores e credores, os empregados, os analistas financeiros, os clientes, o Estado e os entes públicos, e/ou o público em geral15.

Naturalmente, na medida exacta em que aumentam os utilizadores da informação, aumenta também o abismo entre aquilo que o Revisor realiza no âmbito das funções e responsabilidades que reconhece como suas e o que dele é esperado. Ao que se soma, infelizmente, a ininteligibi-lidade da informação certificada para a maioria dos seus utilizadores.

Por outro lado, é certo que a "expansão" do escopo da profissão implica, necessariamente, o alargamento da responsabilidade do profissional, não só em termos quantitativos, uma vez que os montantes monetários em causa são cada vez maiores, como também em termos qualitativos, notando-se um ênfase crescente na responsabilização ao nível civil, tributário e penal, em detrimento do tradicional nível disciplinar.Page 57

Se, tradicionalmente, o Revisor Oficial de Contas respondia, quase exclusivamente, perante a Ordem, ao nível disciplinar, e perante a empresa com a qual celebrava contrato de prestação de serviços, ao nível da responsabilidade civil contratual (por oposição à delitual), no presente, assistimos a um alargamento das entidades que buscam a responsabilização dos Revisores por danos que lhes terão sido causados e que são exactamente as que já referimos como tendenciais utilizadores da informação contabilística certificada.

É exemplo máximo desta realidade a crescente tendência para a proposição de acções contra Revisores e Auditores, por parte de terceiros prejudicados patrimonialmente pela deficiente informação divulgada acerca da situação financeira das empresas com as quais foram celebrados contratos de prestação de serviços, no contexto dos mercados financeiros e de capitais, bem como por parte das próprias entidades reguladoras dos referidos mercados, e pelos próprios Estados, como se vem tornando comum, por exemplo, nos EUA.

Parece, porém, que tal tendência, que ainda não vingou em terras lusas, vem já influenciando a orientação da União Europeia e, muito provavelmente, não demorará a reflectir-se em Portugal.

Na nossa breve análise destas problemáticas, começaremos por abordar os deveres que impendem, no presente, sobre o Revisor Oficial de Contas, bem como as normas legais de responsabilidade nos vários âmbitos - disciplinar, civil, tributário e penal.

Abordaremos também os recentes desenvolvimentos da profissão ao nível comunitário e internacional, o crescente risco que lhe está inerente e ensaiaremos possíveis soluções para lhe fazer face.

Numa breve introdução ao contexto europeu pode avançar-se com uma ideia chave - a regulamentação da profissão dos Revisores Oficiais de Contas favorece o bom funcionamento do mercado único, consubstanciando uma GARANTIA tanto para investidores como para credores e empregados.

Tem-se investido, cada vez mais, na harmonização ao nível europeu, visto que é amplamente reconhecido que as discrepâncias aindaPage 58 dominantes neste âmbito são uma desvantagem considerável nas negociações a nível internacional, com vista a melhorar o acesso das empresas europeias aos mercados internacionais de capitais.

Para a harmonização internacional estão a contribuir, em grande medida, o International Accounting Standards Board (IASB), juntamente com a International Organization of Securities Commissions (IOSCO) - através da elaboração de normas contabilísticas fundamentais, aceites em todos os mercados financeiros do mundo.

A Revisão Oficial de Contas é, ao nível europeu, como ao nível internacional, cada vez mais importante, o que significa que cada vez mais vamos assistir à problematização, à contestação e, "com um pouco de sorte", à concepção de soluções para uma prática cada vez mais segura e íntegra da profissão.

2. Deveres dos Revisores Oficiais de Contas (ROC)
2. 1 Os deveres decorrentes do Estatuto da Ordem dos ROC (EOROC)

Os direitos e deveres dos Revisores Oficiais de Contas vêm previstos nos artigos 52.° e seguintes do seu Estatuto.

No que concerne particularmente aos deveres, estes dividem-se em deveres específicos e deveres em geral.

Nos primeiros enquadram-se, designadamente, o dever de elaborar documento de certificação legal das contas, numa das suas modalidades, ou declaração de impossibilidade de certificação legal (art. 52.71/b) e o dever de respeitar as normas técnicas aprovadas ou reconhecidas pela Ordem que se mostrem aplicáveis nos casos em que haja obrigação de emitir certificações ou relatórios (art. 52.72).

Os segundos abrangem, desde logo, o dever de contribuir para o prestígio da profissão, desempenhando com zelo e competência as suas funções, evitando qualquer actuação contrária à dignidade das mesmas (art. 62.71), bem como outros tão diversos como o dever de pagar asPage 59 quotas, taxas, emolumentos e multas fixados pela assembleia geral ou o dever de não recorrer a qualquer espécie de publicidade profissional por circulares, anúncios, meios de comunicação social ou qualquer outra forma (art. 71.°), o dever de guardar sigilo profissional (art. 72.°) ou o dever de constituir um seguro de responsabilidade civil no valor mínimo de 500.000 por facto ilícito (art. 73.°).

Ainda que não possam considerar-se deveres, em sentido restrito, pensamos ser de referir neste ponto as disposições do Estatuto relativas às incompatibilidades e impedimentos que impendem sobre o Revisor Oficial de Contas.

O artigo chave deste conjunto de disposições é o art. 75.° do Estatuto, de cuja transcrição nos socorremos:

Art. 75° (Incompatibilidades em geral) - A profissão de Revisor Oficial de Contas é incompatível com qualquer outra que possa implicar a diminuição da independência, do prestígio ou da dignidade da mesma ou ofenda outros princípios de ética e deontologia profissional.

No art. 76.° e seguintes são, então, enumeradas uma série de situações de incompatibilidade, distinguindo-se entre incompatibilidades absolutas e relativas e consagrando-se o art. 79.° ao impedimento após cessação de funções de revisão legal das contas.

De entre as situações de incompatibilidade referimos, a título de exemplo, a incompatibilidade absoluta constante do art. 77.°, n.° 1 e que consiste na proibição do exercício, pelos Revisores Oficiais de Contas, de funções de membros de órgãos de administração, gestão, direcção ou gerência em empresas ou outras entidades, salvo as de gestor e liquidatário judiciais e outras decorrentes de atribuição por lei.

2. 2 Os deveres decorrentes do Código das Sociedades Comerciais (CSC)

Os deveres constantes do CSC diferem consoante o Revisor aja como Fiscal Único ou membro do Conselho Fiscal da empresa em causa, ou aja como mero auditor financeiro (com origem estatutária ou contratual).Page 60

Os deveres que decorrem do art. 422.° do CSC para o Revisor -Fiscal Único / membro do Conselho Fiscal são os seguintes:

i. Participar nas reuniões do conselho e da administração...

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