Algumas reflexões a propósito da proposta de directiva sobre "direitos dos consumidores"

AutorJorge Pegado Liz
CargoAdvogado

Jorge Pegado LIZ 1

1. Introdução Oportunidade e razão de ordem

1.1. A Comissão publicou a sua mais recente proposta de directiva em matéria de protecção dos consumidores nos finais de 20082, precedida e seguida da maior campanha mediática jamais vista a propósito de iniciativas comunitárias neste domínio, contando-se por dezenas os artigos na imprensa, intervenções públicas, entrevistas, colóquios, seminários, debates e conferências em que a Comissária encarregada dos interesses dos consumidores, Sra. Meglena Kuneva, participou, um pouco por toda a Europa, anunciando a "boa nova".

1.2. No entanto, a tentativa de fazer passar esta proposta na legislatura finda, intenção claramente manifestada pela referida Comissária e pela Direcção Geral que tutela, não resultou, em virtude da grande reacção negativa que a mesma suscitou na generalidade das organizações e associações representativas dos consumidores na Europa, das reservas que encontrou junto de alguns dos mais eminentes epígonos da comunidade académica e da oposição manifestada por vários parlamentares europeus, de que se fizeram eco alguns estados membros em reuniões no Conselho.

1.3. É assim o momento adequado para uma reflexão crítica sobre a mencionada proposta, a tempo de contribuir para a continuação do debate que, na próxima legislatura, irá prosseguir sobre esta matéria, se a Comissão entender manter a proposta "qua tale".

1.4. Importa, para isso, recordar o contexto e os antecedentes da proposta, examinar os motivos que forma alegados para a sua publicação, enunciar os objectivos que a Comissão anunciou para ela e analisar criticamente o seu teor em geral.

2. Contexto e antecedentes da proposta

2.1. A presente proposta representa a confluência de duas iniciativas já com vários anos, uma de cariz marcadamente académico e outra de natureza de politica legislativa a nível comunitário.

A primeira tem as suas origens remotas na ideia da uniformização do direito civil a nível europeu com a criação de um Código Civil Europeu ou, pelo menos, na tentativa de harmonização do direito das obrigações em geral e dos contratos em particular.

A segunda prende-se antes com a ideia da codificação do direito do consumo a nível comunitário ou com a revisão do acervo relativo à defesa do consumidor.

2.2. Nos começos do século XX vários projectos académicos tiveram como objectivo a harmonização do direito civil europeu, em particular do direito dos contratos. Em 1929 é publicado um projecto de código franco-italiano das obrigações e dos contratos; em 1953 a Associação Henri Capitant elaborou um projecto de código comum das obrigações na Europa.

Mais recentemente, em 1980, foi criada a Comissão sobre o Direito Europeu dos Contratos, dirigida pelo Prof. Ole Lando, que, em 1995, publica a 1.ª Parte dos seus Princípios do Direito Europeu do Contrato (PDEC), contendo os princípios relativos à execução e ao incumprimento, logo seguida, em 1998, por uma 2.ª parte relativa à formação, validade, interpretação, conteúdo e mandato e, em 2001, por uma 3.ª parte sobre o regime geral das obrigações.

Por seu turno, a Academia de Pavia ou, como também é conhecida, a Academia dos Privatistas Europeus, cujos trabalhos foram dirigidos pelo Prof. Gandolfi, publica, em 2001, o Livro I do Código Europeu do Contratos, relativo aos contratos em geral e, em 2006, a primeira parte do Livro II relativo aos contratos em especial, dedicado ao contrato de compra e venda.

De outro lado, os princípios UNIDROIT, elaborados pelo Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado em 1994, foram revistos em 2004 para os adaptar às especificidades do comércio electrónico.

2.3. No seio das instituições comunitárias, foi no Parlamento Europeu que, pela primeira vez, em Resolução de 1989, se fez apelo à harmonização de certos aspectos do direito privado3, orientação que reafirmou posteriormente em sucessivas resoluções, de que se destacam as de 9 de Julho de 2003, de 23 de Março e de 8 de Setembro de 2006.

Do lado da Comissão Europeia, é em 2001 que, numa Comunicação relativa ao "direito europeu dos contratos", é lançada uma larga consulta pública sobre a possibilidade de elaborar um direito comum dos contratos como forma de contribuir para um melhor funcionamento do mercado interno4.

No seguimento do debate que esta comunicação ocasionou, em especial nos meios académicos, onde foi genericamente acolhida com sérias reservas5, a Comissão publicou, em 2003, uma segunda Comunicação, intitulada "Um direito europeu dos contratos mais coerente. Um plano de acção"6, onde definiu três opções de trabalho futuro: a construção de um "quadro comum de referência" (commom frame of reference CFR); a elaboração de cláusulas e condições contratuais tipo; ou a adopção de um instrumento opcional no domínio do direito dos contratos7.

Finalmente, recolhidos e analisados os vários contributos recebidos, numa terceira Comunicação intitulada "Direito Europeu dos Contratos e Revisão do Acervo. O caminho a seguir"8, a Comissão decidiu que não optaria por um código civil europeu que harmonizasse o direito dos contratos dos países membros, mas antes que o caminho a seguir seria o da elaboração de um "quadro comum de referência" (CFR), eventualmente a complementar por um instrumento opcional, cujos contornos não ficaram claramente definidos.

2.4. É a partir desta orientação, que não foi sufragada por nenhuma resolução do PE9, que a Comissão deu início a toda uma série de consultas e de encomendas de estudos, ao abrigo, designadamente do "Sexto Programa Quadro para a investigação e o desenvolvimento tecnológico", de que se destacam a "Rede comum para o direito europeu dos contratos", a quem é confiada a tarefa de elaborar um Projecto de quadro comum de referência (Draft Common Frame of Reference DCFR), em sede de direito dos contratos.

Desta Rede fazem principalmente parte os membros do grupo de estudo sobre o código civil europeu, o grupo de investigadores sobre o direito privado comunitário em vigor, dito Grupo do Acervo Comunitário ("Acquis Group"), a Associação Henri Capitant em conjunto com a Société de Législation Comparée e o Conseil Supérieur du Notariat, o Common Core Group, o Research Group on thr Economic Assessment of Contract Law Rules, conhecido como o Economic Impact Group (TILEC Tilburg Law and Economics Center), o Database Group, a Academy of European Law (ERA) e um grupo de especialistas em Direito dos Seguros, o chamado "Restatement of European Insurance Contract Law Group"10.

O objecto das consultas é vasto, englobando as regras gerais do contrato, o direito das obrigações, a gestão de negócios, a responsabilidade extracontratual, o enriquecimento sem causa, os contratos em especial e, desde logo, o contrato de seguro, e, em futuro mais afastado, o direito de propriedade, as garantias e o "trust".

2.5. O avanço dos trabalhos foi acompanhado por sucessivos Relatórios apresentados à Comissão e discutidos publicamente11, o primeiro de 2005 e o segundo de 200712, onde, pela primeira vez se refere a necessidade de ser dada prioridade ao "direito do consumo" como forma de contribuir para a revisão do acervo em matéria de protecção dos consumidores, tema que havia sido objecto do Livro Verde publicado a 7 de Fevereiro desse ano de 200713.

2.6. É aqui que a iniciativa da revisão do acervo comunitário em matéria de protecção dos consumidores14 e a questão da harmonização do direito europeu dos contratos pela primeira vez confluem, embora nada, inicialmente, implicasse que assim acontecesse, nem, teoricamente, obrigasse, ou, sequer, aconselhasse a que assim sucedesse.

2.7. Com efeito, datava, de há muito, em vários círculos do pensamento jurídico na Europa, a ideia das vantagens da codificação dos diplomas avulsos sobre direito do consumo nos vários estados-membros, e em alguns deles, embora por formas diversas e com diferentes resultados, essa ideia fora mesmo levada a cabo15.

Não admira, pois, que, desde bastante cedo, uma ideia semelhante tivesse ocorrido para o direito do consumo a nível comunitário, nomeadamente a partir do momento em que a União Europeia se viu atribuir competência própria neste domínio16 e à medida que se ia constatando que diversas directivas definiam e regulavam as mesmas matérias de forma diferente, quando não claramente contraditória17.

2.8. É assim que já no Livro Verde sobre a Protecção dos Consumidores de 200118 se dá conta da dispersão legislativa neste domínio e dos seus inconvenientes para a realização do mercado único e se aponta como solução possível a publicação de uma "directiva-quadro" para regular as práticas comerciais desleais, complementada por directivas específicas para domínios especiais, se necessário.

No follow-up deste Livro Verde, a Comissão, em nova Comunicação de 200219, dava conta de que a maioria dos "stake-holders" era favorável à sua proposta, acrescentando, no entanto, um elemento de primordial importância, que não tinha ficado claramente expresso na primeira comunicação o da natureza "total" da harmonização proposta20.

Identicamente, no seu documento de "Estratégia da Politica dos Consumidores para 2002-2006"21, a Comissão insistia na ideia do estabelecimento de regras e práticas comuns de defesa dos consumidores em toda a Europa, criando um ambiente mais coerente na UE, o que, constituindo mesmo o objectivo primeiro da sua estratégia nesse período, se traduziria pelo estabelecimento de um conjunto comum de regras relativas às práticas comerciais e aos direitos contratuais dos consumidores, passando...

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