A Concretização (lógica) da Técnica da antecipação

AutorIsabel Celeste M. Fonseca
Páginas231-240

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0. Introdução

Como se apontou nas considerações introdutórias, a concretização do direito ao processo efectivo e temporalmente justo impõe a previsão de processos simplificados e estruturalmente adequados para as situações-de-urgência. E, como se indicou, a realização da tutela judicial das pretensões-de-urgência acontece vulgarmente através da consagração de processos urgentes, maxime através de processos urgentes cautelares, sendo que tais processos concretizam normalmente diferentes técnicas processuais. Ora, a técnica da antecipação da tutela judicial é normalmente uma técnica empregue para tutelar a urgência, sendo que ela é concretizada tanto em processos urgentes cautelares como em outro tipo de processos. Na verdade, nos processos urgentes cautelares a técnica da antecipação revela-se sobretudo numa perspectiva qualitativa ou funcional, uma vez que, concretizando-se em simultâneo com a concretização da técnica da acessoriedade-instrumentalidade e com a técnica da provisoriedade, visa assegurar a efectividade do processo principal. E, em outro tipo de processos, a antecipação manifesta-se fundamentalmente como funcionalmente independente ou antecipação tout court.

De um modo ou de outro, cumpre sublinhar que tal técnica desempenha um papel determinante na realização do direito ao processo efectivo e temporalmente justo, uma vez que, mercê dos seus efeitos, a decisão antecipatória assegura, ainda que de diferentes modos - id est com antecipação provisória de efeitos ou com antecipação definitiva -, a protecção judicial das pretensões-de-urgência antes daquele momento que no processo é normalmente considerado como o momento previsto para a realização dessas pretensões. Como vimos, o conceito de antecipação esbarra frequentemente com o sentido empírico. Contudo, há um conceito técnico-jurídico de antecipação. Ainda assim, a técnica da antecipação tem suscitado alguma controvérsia na dogmática italiana.

Esta técnica está, sobretudo, bem trabalhada no contexto dos estudos que versam sobre a tutela de urgência cautelar. Este técnica surge moldada numa perspectiva funcional e em conexão com a técnica da provisoriedade, em termos que a antecipação cautelar só é legítima se desembocar numa decisão-de-urgência-provisória. E mais. No contencioso administrativo, a validade da antecipação cautelar é também aferida a partir de um conceitoPage 232 de identidade de conteúdo entre a decisão antecipatória e a decisão judicial antecipada, em termos que aquele é resultado imediato dos poderes de pronúncia do sujeito-jurisdicional-de-urgência, e a antecipação legítima pressupõe que este poderes não possam ser mais amplos dos que aqueles de que é titular o sujeito-jurisdicional. E esta questão coloca-se com acuidade no contexto dos poderes de pronúncia dos tribunais administrativos perante o exercício de poderes discricionários do sujeito-administrativo. Numa primeira nota, é premente acentuar que, por regra, os processos cautelares previstos no título V do CPTA permitem aos sujeitos-no-processo alcançar, através de uma decisão-judicial-de-urgência, a realização provisória de pretensões-jurídicas desde que essa antecipação seja adequada para salvaguardar a efectividade de uma decisão jurisdicional a proferir em outro processo (no processo principal). E esta característica da decisão antecipatória do processo cautelar está marcada, designadamente, no artigo 112.º, n.º 1 e n.º 2, no artigo 120.º, n.º 1, alínea c), no artigo 122.º e artigo 121.º (a contrario) e no artigo 3.º do CPTA.

Numa segunda nota, é importante realçar que os demais processos urgentes previstos no título IV do CPTA permitem obter uma decisão judicial que realiza o direito material de forma antecipada no tempo. Aliás, o processo de intimação para tutela de direitos, liberdades e garantias traduz uma modalidade especial de antecipação, uma vez que concretiza não só uma antecipação declaratória como permite realizar uma antecipação do momento executório. Assim é ex vi do artigo 109.º, n.º 2 e n.º 3 do CPTA. Contudo, forçoso é também reconhecer que a técnica da antecipação quantitativa ou antecipação tout court substitui a técnica da antecipação qualitativa em certas modalidades de processos urgentes cautelares, previstos no título V, modificando-os e aproximando-os dos processos urgentes autónomos, previstos no título IV do CPTA. E, mais uma vez, assim acontece nas modalidades dos processos urgente cautelares previstas nos artigos 121.º e 132.º, n.º 7 CPTA.

  1. A antecipação cautelar

    A antecipação cautelar decorre da necessidade de se obstar ao prejuízo de retardamento da decisão judicial definitiva. Sem que exista no CPTA os limites de que padece nomeadamente o référé conservatoire, que permite ao juiz adoptar todas as medidas úteis «sans faire obstacle à l'exécution d'aucune décision administrative»107, o juiz cautelar português pode, nos termos do art.º 112.º, n.º 2 CPTA, emitir todas as providências cautelares conservatórias ou antecipatórias que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade de uma sentença. O juiz cautelar só não pode antecipar definitivamente a causa - tal como não podePage 233 o juiz cautelar administrativo espanhol108, nem o italiano109, nem o alemão110 e nem o juge des référés111 - e também não pode dar ao requerente mais, ou coisa diferente, do que a este é permitido alcançar pela pronúncia de mérito112. No modelo cautelar português, são, por um lado, as próprias características da tutela cautelar, ou seja a instrumentalidade perante a efectividade da tutela principal e a provisoriedade da decisão cautelar, e, por outro, a identidade de conteúdos entre a decisão antecipatória e a decisão judicial antecipada, o que limita os contornos da antecipação. Com efeito, é em função do próprio conteúdo das sentenças principais, sendo que este decorre dos poderes de pronúncia dos tribunais administrativos perante a Administração113, que surgem os limites do conteúdo da decisão antecipatória, sendo que esta é delimitada também pela instrumentalidade e pela provisoriedade.

    Cumpre em primeiro lugar distinguir uma providência cautelar conservatória de uma antecipatória. Seguimos o método calamandreiano114: Assim, e segundo esta metodologia, enquanto que a conservatória serve para anular ou minimizar o risco de ser posteriormente impossível proceder à execução de sentença favorável - por entretanto se ter alterado o status quo ante («o estado em que estava a coisa») -, a antecipatória serve para anular ou minimizar os prejuízos que decorrem por si só do retardamento da sentença e do facto de não ser possível proporcionar, no imediato, a satisfação da pretensão jurídica substantiva que está a cargo do sujeito-jurisdicional. Dizendo o mesmo por outras palavras, enquanto a providência conservatória produz um efeito hermético de modo a manter o status quo - «o estado em que se encontra a coisa», a antecipatória actua por via da ampliação provisória de uma situação jurídica existente, proporcionando a aceleração e a realização antecipada do direito material para a situação litigiosa controvertida.

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    É neste contexto que surgem os condicionamentos impostos pela provisoriedade. Apontámos há pouco que o termo «provisoriedade qualitativa» significa fundamentalmente três coisas, a saber: primo: que a apreciação da quaestio iuris da causa principal pode realizar-se no processo cautelar, sendo que tal apreciação, por referência ao direito material a aplicar na causa principal, deve ser sempre inconclusiva; secundo, que o julgamento da quaestio iuris pode acontecer na condição de o mesmo ficar em aberto, isto é, na condição de tal questão litigiosa existente entre as partes poder vir a ser...

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