A evolução do processo coletivo e as Class actions norte-americanas

AutorIvana BONESI
CargoProfessora de Direito do Consumidor do Curso de Direito das Faculdades de Vitória no Brasil

O processo civil, classicamente, sempre foi vislumbrado sob a ótica do individual, segundo a qual cada um defenderia seus interesses, em juízo, individualmente. Tal visão individualista do processo não dava margem a muitas exceções, na medida em que, nas palavras de Arruda Alvim "o perfil do processo civil, emergido do individualismo, traduziu-se em institutos jurídicos que consideravam o indivíduo, enquanto tal, agindo isoladamente"1.

Conseqüentemente, inúmeras violações e afrontas aos bens e interesses de uma determinada coletividade ou sociedade não podiam ser judicialmente questionadas, devido à ausência de pessoa legitimada para demandar em prol do todo. Ainda que uma coletividade de pessoas experimentasse determinado prejuízo, observava-se a discrepância de ninguém deter a legitimidade para estar em juízo em nome do todo, configurando-se, processualmente, uma verdadeira negativa de acesso à justiça.

O processo eminentemente individualista não possibilitava a solução dos litígios oriundos da sociedade de massa, de modo que correntes prejuízos ocasionados aos cidadãos permaneciam não tutelados pelo sistema jurídico vigente. O problema da tutela dos interesses coletivos, portanto, não decorria da ausência de previsão pelas normas de direito material, mas sim, da ausência de mecanismos processuais que fossem úteis para uma proteção efetiva dos interessados.

Essa incoerência fática redundou em anseios sociais e conflitos de massa, que clamavam pela instituição de novos mecanismos processuais de proteção ao direito material da coletividade, afinal o Direito deve, sempre, estar a serviço da sociedade.

Evidencia-se, assim, que não foi a transformação do Estado que estimulou as alterações da sociedade e da forma de prestação jurisdicional, ao contrário, foram as mudanças das relações sociais que, antes de todas, acabaram refletindo na forma do Estado e na ciência jurídica2.

Dentro desse contexto de transformações sociais, tem-se que a Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra na segunda metade do século XVIII, foi a grande mola propulsora dos interesses transindividuais3.

É consenso que a Revolução Industrial alterou profundamente a estrutura da sociedade, até então essencialmente comercial e agrícola, transformando-a em uma estrutura onde a manufatura industrial dominou a vida econômica. A população rural deslocou-se para as cidades, criando enormes concentrações urbanas e intensificando a miséria. Isso gerou revolta e levou os governos a criarem leis com a intenção de conter os conflitos de massa. A massa ou grupo, nova figura social, rompeu com a dicotomia existente entre o Estado e o indivíduo.

Durante séculos o Direito permaneceu rigidamente dividido entre o público e o privado. Os interesses juridicamente protegidos pelo ordenamento estatal eram somente os interesses individuais configurados em Direitos subjetivos, isso é, a permissão, dada por meio da norma jurídica válida, para fazer ou não fazer alguma coisa, para ter ou não ter algo, ou, ainda, a autorização para exigir, por meio dos órgãos competentes do Poder Público ou por intermédio dos processos legais, em caso de prejuízo causado pela violação da lei, o cumprimento da norma infringida ou a reparação do mal sofrido.

Com a Revolução Industrial e a eclosão de uma nova "sociedade de massas" deu-se o questionamento desses valores tradicionais e individualistas. Para Rodolfo de Camargo Mancuso, nesse novo modelo "não há lugar para o homem enquanto indivíduo isolado; ele é tragado pela roda-viva dos grandes grupos e corporações: não há mais a preocupação com as situações jurídicas individuais, o respeito ao indivíduo enquanto tal, mas, ao contrário, indivíduos são agrupados em grandes classes ou categorias, e como tais, normatizados" 4.

Devido a essa substancial transformação, da passagem de uma sociedade individualista para uma sociedade de massas, os valores se alteraram e os interesses coletivos passaram a clamar por mais proteção5. A partir de então surgiu a necessidade de criação de novos instrumentos jurídicos, a fim de proporcionar a tutela dos denominados interesses transindividuais. Entretanto, o Direito e particularmente o processo civil, só muito lentamente acompanharam essa tendência de coletivização das demandas e reivindicações.

Uma vez estabelecida a necessidade de uma renovação dos esquemas processuais clássicos para a tutela dos interesses coletivos de uma sociedade de massas, surgiu a questão de como resolver, no plano prático, os principais problemas que se colocavam para a concreta efetivação de uma tutela jurisdicional coletiva.

Ao examinar a origem das tutelas coletivas, impõe-se uma breve análise do direito comparado, especificamente do enfoque doutrinário e legislativo da questão nos países do sistema do Common Law 6. Há maior interesse no exame dos meios encontrados para o tratamento dos litígios coletivos na Inglaterra e, posteriormente, nos Estados Unidos da América, haja vista que a legislação brasileira, especificamente no que se refere às ações voltadas à tutela dos interesses coletivos, buscou inspiração nos sistemas desses dois países.

1. A origem das ações de classe no Common Law

A Inglaterra é apontada como o berço dos litígios coletivos no Direito moderno. Buscando solucionar a proliferação de demandas judiciais com objetivos semelhantes, as cortes de equidade inglesas7, no final do século XVII, criaram o Bill of Peace8 e passaram a aceitar as ações representativas (representative actions), por meio das quais um ou alguns membros do grupo poderiam representar, em juízo, o interesse de todos os que se encontravam diante da mesma situação litigiosa. Tais ações, contudo, somente eram admitidas quando: (i) o grupo envolvido fosse numeroso a ponto de impossibilitar ou tornar impraticável o litisconsórcio de todos; (ii) todos tivessem um interesse comum; (iii) o autor representasse adequadamente os interesses dos ausentes9.

Posteriormente, com a fusão dos sistemas da Law e da Equity10, decorrente da Supreme Court of Judicature Act11, de 1873, as representative actions adquiriram características mais modernas. Não obstante tal fato, a interpretação em torno do interesse comum, pelas cortes inglesas, assumiu feições mais severas e, com isso, o final do século XIX e o início do século XX foram marcados pelo quase desaparecimento das ações coletivas12.

Aluisio Mendes cita dois casos, do início do século XX, que demonstraram o rígido posicionamento das cortes inglesas em relação as representative actions. No primeiro, Duke of Bedford v Ellis, em 1901, um grupo de feirantes ajuizou uma ação em nome próprio e de outros feirantes, reivindicando o direito de preferência na ocupação de espaços em um mercado público. A decisão proferida, contudo, entendeu que os membros da classe não partilhavam de um interesse comum13.

Já em Mark&Co. Ltd. V. Knight Steamship Co. Ltd., de 1910, dois comerciantes demandaram contra uma transportadora em razão de carga perdida no mar, pleiteando o pagamento de indenização para todos os mercadores atingidos. Nesse caso, a corte entendeu haver duas restrições centrais para a viabilidade da demanda coletiva: a falta de interesse comum e o pedido de indenização, concebido como direito essencialmente pessoal e que exigia a particularização da atividade probatória14.

Foi apenas no final do século XX que as ações coletivas ressurgiram com mais força na Inglaterra, mas esse estacionamento não impediu, contudo, uma forte contribuição ao direito norte-americano, de modo que as representative actions, com as devidas adaptações, foram codificadas, pela primeira vez, no sistema de equidade norte-americano, por meio da Federal Equity Rule 48 de 1842 15.

2. As class actions norte-americanas
2.1. As primeiras legislações norte-americanas em defesa dos interesses coletivos

A Federal Equity Rule 48 16, de 1842, foi a primeira legislação norte-americana voltada para a tutela dos interesses coletivos. Entretanto, em razão de sua redação, a regra impossibilitava que os efeitos da decisão atingissem os interessados ausentes do processo, contrariando o próprio caráter coletivo que se pretendia imprimir.

Em 1912, sobreveio nova regulamentação e a antiga Federal Equity Rule 48 foi revogada pela Federal Equity Rule 38 17 e forneceu a primeira definição normativa das class actions, pela indicação de seus requisitos essenciais, quais sejam: inviabilidade da participação de todos os membros da classe no processo; adequação da representatividade daquele membro da classe que participa diretamente da relação processual; presença de uma questão de fato ou de direito comum a todos os membros da classe, que, por seu turno, é formada, do ponto de vista substancial, por todos aqueles sujeitos aos quais a questão pode ser considerada comum18.

Em 1938, com a fusão entre direito e equidade no processo civil federal norte-americano, foram promulgadas as Federal Rules of Civil Procedure, que vieram a disciplinar o processo civil nos juízos federais19. A Rule 23 20 destinou-se a regular as class actions, que, com isso, adquiriram, efetivamente, inequívoca importância nos Estados Unidos da América.

A Rule 23 manteve os critérios dos regramentos anteriores, segundo os quais a class action somente poderia ser admitida nos casos em que a apresentação de todos os interessados perante a corte fosse impraticável e desde que fosse assegurada, aos demais membros da classe, a representatividade adequada. Sua grande inovação, contudo, foi a...

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