Comentários à lei-quadro das contra-ordenações ambientais

AutorLourenço NOGUEIRO
CargoProdurador-Geral Adjunto da República no Ministério do Ambiente

O nosso exmo colega, professor doutor Mário Frota, lançou-nos, no decorrer do nosso 32.° almoço anual de curso, o desafio de fazermos o comentário que entendêssemos à denominada lei Quadro das Contra-Ordenações Ambientais, a Lei n.° 50/2006, de 29/8, por tratar matéria de plena actualidade, sendo prova disso a confusão social gerada há escassos dias pela obrigatoriedade de até 31/5/2009 se regularizarem todas as situações de uso de recursos hídricos sem autorização, licença ou concessão (vulgo, registo de poços, de furos e de toda a captação de água destes ou de qualquer corrente de água natural).

Oportuna, pois, a vários títulos, uma análise jurídica do sobredito diploma (que, aliás, não vai ser a 1.ª, porque outras já houve!): subjectivamente, porque ainda há pouco mais de um mês elaborámos um parecer em parte sobre o mesmo tema, o que nos facilita a tarefa; objectivamente, porque, como constatámos, o desconhecimento pelas populações desse diploma e de todos os que respeitam a recursos hídricos em geral é quase absoluto. Grave situação esta, como é óbvio, e sobre a qual as competentes entidade públicas pouco fizeram ou, pelo menos, já podiam ter feito muito mais, como se impõe e é sua obrigação social.

Será bem pouco pedir a essas entidades públicas que esclareçam as populações e divulguem devidamente a importância social e quase vital da preservação qualitativa e quantitativa dos recursos hídricos (para isso é que foram colocadas nos lugares em que se encontram e nos cargos que ocupam); será quase nada pedir-lhes o esforço de esclarecerem as populações sobre as leis publicadas para preservação do ambiente em geral e sobre a necessidade da dureza das respectivas sanções; é obrigação funcional e social dessas entidades a adopção de medidas eficazes que coloquem os recursos hídricos a coberto do perigo de contaminação ou da sua exaustão.

Um trabalho consciente, pensado e aturado nesta área obterá, seguramente, a solidariedade social e trará, por certo, resultados animadores e muito positivos para todos, e de que os seus autores poderão orgulhar-se. Como obstáculo a este desiderato, não se poderá conceber a hipótese de menos vontade política ou de outra qualquer natureza. O tempo urge e avança inexoravelmente; "não podemos lavar-nos duas vezes na água do mesmo rio"!

Aqui chegados, passemos, então, ao tema proposto: a análise jurídica do sobredito diploma. Análise naturalmente perfunctória, quer porque o espaço de publicação é limitado, quer porque nos falta tempo e, em especial, saber para uma apreciação exaustiva.

Se ajudarmos os nossos leitores a reflectir melhor ou mais um pouco nas questões que vamos tratar, teremos atingido os objectivos que nos propusemos.

E porque aquela legislação respeita ao ilícito de mera ordenação social, a sua apreciação, ainda que superficial, obriga a uma abordagem prévia deste tipo de ilícito. É o que vamos fazer já de seguida:

I O Ilícito de Mera Ordenação Social. Legislação Ambiental

1. Conforme resulta do art.° 47.° da Lei de Bases do Ambiente (Lei n.° 11/87, de 7/4) e como tem sido confirmado por toda uma infinidade de diplomas legais a partir dessa lei, o ilícito de mera ordenação social constitui o ilícito regra em sede ambiental cujo direito apenas a partir da década de 80 do século passado começou a dar passos seguros e se impôs como verdadeiro direito no nosso ordenamento jurídico, ganhando autonomia quer através daquela Lei de Bases, quer principalmente através da larga e firme consagração constitucional (vejam-se, por exemplo, os art.°s 9.° als d) e e), 52.° n.° 3 al. a), 66.°, 78.° n.°s 1 e 2 al. c), 81.° als m) e n), 90.°, 93.° n.°s 1 al. d) e 2, 165.° n.° 1 al. g), entre outros, da CRP), a ponto de Gomes Canotilho, in "Direito Constitucional", pág. 518, atribuir ao direito do ambiente e qualidade de vida, consagrado no art.° 66.° da nossa Lei Fundamental, a "mesma densidade subjectiva dos direitos, liberdades e garantias", considerando-o e valorando-o como um direito subjectivo por natureza inerente "ao espaço existencial do cidadão, independentemente da sua justicialidade e exequibilidade imediata".

2. Na génese remota da atenção que então começou a dispensar-se à natureza e ao ambiente e da correspondente explosão legislativa que por via disso se verificou a nível geral e particularmente em Portugal, não terão deixado de estar "a ligação do homem à natureza e até o mito do bom selvagem (...) presentes (...) em certas teses filosóficas"

Porém, só depois de um longo período temporal "de avanço científico, de crescimento económico, de descoberta e exploração de recursos tidos por inesgotáveis" e de mudança de mentalidades ideológicas sobre esses avanços, se começou a tomar consciência dos efeitos nefastos para a natureza e para o ambiente resultantes da desen-freada industrialização, urbanização e motorização ou da "interacção dos factores tecnológicos e demográficos" e da "própria exiguidade e unidade do Planeta"

E foi dessa forma que após escassas referências constitucionais se passou, já no último quartel do séc. XX, à universalização do direito do ambiente e à sua ligação "a um largo conjunto de incumbências do Estado e da sociedade e, assim, a inseri-lo, em plenitude no âmbito da constituição material comum dos elementos da sua ideia de Direito"

Direito do Ambiente que, por exemplo na Alemanha, a doutrina e a jurisprudência, associando-o à ideia de dignidade da pessoa humana, ao direito à vida e ao livre desenvolvimento da personalidade e, em suma, aos princípios do Estado Social de Direito, identificam com um "direito ao mínimo ecológico de existência", análogo ao "mínimo social de existência", ou a propósito do qual alguns autores falam na terceira geração de direitos fundamentais, a geração do direito ao ambiente, ao desenvolvimento, à participação no património da humanidade, à autodeterminação.

3. Em Portugal, estas concepções foram parcialmente acolhidas e conjugadas, como bem resulta daqueles normativos constitucionais atrás referidos e da Lei de Bases do Ambiente, onde se constata o acolhimento do direito do ambiente a par dos direitos de liberdade e dos direitos sociais, económicos e culturais, participando de uns e de outros.

E se se não pode afirmar categoricamente que com estes se entrecruza o direito do ambiente é porque, como afirma Jorge Miranda, com este direito encontramo-nos já no âmbito "dos chamados direitos dos povos".

Seja como for, certo é que o direito do ambiente integra hoje o elenco dos direitos fundamentais e quer na nossa Constituição, quer na legislação ordinária que abundantemente tem sido publicada [desde a Lei Geral do Ambiente aos diplomas legais que ora mais nos interessam para o caso concreto, por exemplo, a Lei n.° 54/2005, de 15/11 titularidade dos recursos hídricos; a Lei n.° 58/2005, de 29/12 a denominada Lei da Água e o DL n.° 226-A/2007, de 31/5- regime de utilização dos recursos hídricos), encara-se esse direito não tanto limitado a um direito das pessoas concretas hoje viventes, mas a um direito das gerações presentes e das gerações futuras, no entendimento elementar de que a terra é finita e não existem recursos inesgotáveis e as actuais gerações não só não têm o direito de gastar todos esses recursos naturais, como têm o dever de os preservar e de zelar pela sua manutenção e integridade qualitativa.

Já a propósito, Souto de Moura, em "Crimes contra o Ambiente. Porquê e Como", in Jornadas de Direito Criminal, II, pág. 331, dizia que finalmente "nos demos conta de que precisávamos da natureza não só pelo que ela nos dá, mas também no sentido de que precisamos de a manter".

4. Como direito fundamental que é, ou pelo menos enquanto os interesses que lhe estão subjacentes revertem ou podem reverter em verdadeiros direitos fundamentais direitos, liberdades e garantias ou recondutíveis a direitos de natureza análoga (em rigor, não poderemos afirmar que há um direito por exemplo a que não se verifiquem poluição ou erosão art.° 66.° n.° 2 al. a); ou ao gozo de paisagens biologicamente equilibradas, de reservas e parques naturais e de recreio (art.° 66.° n.° 2 al. b) e c); ou a uma correcta localização de actividades (art.° 66.° n.° 2 al. b)), incumbe não só a toda a Comunidade, mas principalmente ao Estado o dever fundamental de defender e preservar o ambiente, ora abstendo-se de acções que o agridam e lesem (atitude de non facere), ora agindo contra a sua agressão e lesão (quer através do direito de resistência art.° 21.°, quer através do direito de perseguição judicial art.° 52.° n.° 3 e al. a) da Constituição; 278.° e 279.° do CPenal e Lei n.° 50/2006, de 29/8, entre outros normativos e diplomas), aqui avultando, como já acima dito e no que mais nos interessa para a economia desta exposição, as contra-ordenações, como sanção regra para a violação do direito do ambiente.

5. E no que concerne à violação deste ramo do direito, muito haveria a dizer, quase nunca abonatório para o nosso legislador, desde logo a começar pela:

a). Incompreensível brandura das penas dos crimes num máximo de três anos de prisão ou 600 dias de multa (esta com quase absoluta prioridade sobre aquela art.° 70.° do Cód. Penal!) e respectivas condições objectivas de punibilidade (não observância das "disposições legais ou regulamentares" ou "de forma grave") art.°s 278.° e 279.° do CPenal paradoxalmente estas dependentes de meras "obrigações impostas pela autoridade administrativa competente", que pressupõem a sua comunicação aos infractores;

b). Extrema dureza das coimas das contra-ordenações, em especial no limite mínimo da respectiva moldura, quando comparadas com aquelas sanções criminais, que de momento e aparentemente para o comum dos cidadãos e no geral nenhuma razão plausível justifica, a não ser a de se poder obter fáceis e...

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