O controle de políticas públicas pelo Poder Judiciário

AutorAda Pellegrini Grinover
CargoProfessora Titular de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
1. Fundamento constitucional do controle

Montesquieu condicionara a liberdade à separação entre as funções judicial, legislativa e executiva, criando a teoria da separação dos poderes1 e afirmando que a reunião de poderes permite o surgimento de leis tirânicas, igualmente exeqüíveis de forma tirânica2.

Vale lembrar, com Dalmo Dallari3, que a teoria foi consagrada em um momento histórico o do liberalismo em que se objetivava o enfraquecimento do Estado e a restrição de sua atuação na esfera da liberdade individual. Era o período da primeira geração de direitos fundamentais, ou seja das liberdades ditas negativas, em que o Estado só tinha o dever de abster-se, para que o cidadão fosse livre de fruir de sua liberdade. O modelo do constitucionalismo liberal preocupou-se, com exclusividade, em proteger o indivíduo da ingerência do Estado.

Esse estado de coisas alterou-se com o fenômeno histórico da Revolução Industrial, em que as massas operárias assumem relevância social, aparecendo no cenário institucional o primeiro corpo intermediário, porta-voz de suas reivindicações: o sindicato.

A transição entre o Estado liberal e o Estado social promove alteração substancial na concepção do Estado e de suas finalidades. Nesse quadro, o Estado existe para atender ao bem comum e, conseqüentemente, satisfazer direitos fundamentais e, em última análise, garantir a igualdade material entre os componentes do corpo social. Surge a segunda geração de direitos fundamentais a dos direitos econômico-sociais , complementar à dos direitos de liberdade. Agora, ao dever de abstenção do Estado substitui-se seu dever a um dare, facere, praestare, por intermédio de uma atuação positiva, que realmente permita a fruição dos direitos de liberdade da primeira geração, assim como dos novos direitos.

No Brasil, durante muito tempo os tribunais auto-limitaram-se, entendendo não poder adentrar o mérito do ato administrativo. Diversas manifestações do Poder Judiciário, anteriores à Constituição de 1988, assumiram essa posição4.

No entanto, a Lei da Ação Popular abriu ao Judiciário a apreciação do mérito do ato administrativo, ao menos nos casos dos arts. 4°, II, b e V, b, da Lei n. 4717/65, elevando a lesão à condição de causa de nulidade do ato, sem necessidade do requisito da ilegalidade. E José Afonso da Silva preconizava que sempre se possibilitasse a anulabilidade do ato por simples lesividade5.

Mas foi a Constituição de 1988 que trouxe a verdadeira guinada: em termos de ação popular, o art. 5°, inc. LXXIII introduziu a seguinte redação:

Art. 5°, inc. LXXIII: "Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência" (grifei).

Ora, o controle, por via da ação popular, da moralidade administrativa não pode ser feito sem o exame do mérito do ato guerreado. Trata-se, aqui, de mera lesividade, sem o requisito da ilegalidade.

Cândido Dinamarco6 também entende que foi a ação popular que abriu o caminho do Judiciário em relação ao controle do mérito do ato discricionário, devendo-se a ela a "desmistificação do dogma da substancial incensurabilidade do ato administrativo", provocando "sugestiva abertura para alguma aproximação ao exame do mérito do ato administrativo".

Mas a Constituição de 1988 fez mais: no art. 3° fixou os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, da seguinte maneira:

Art. 3°: "Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

  1. construir uma sociedade livre, justa e solidária;

  2. garantir o desenvolvimento nacional;

  3. erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

  4. promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação."

E, para atingir esses objetivos fundamentais (aos quais se acresce o princípio da prevalência dos direitos humanos: art. 4°, II, da CF), o Estado tem que se organizar no facere e praestare, incidindo sobre a realidade social. É aí que o Estado social de direito transforma-se em Estado democrático de direito.

Mas, como operacionalizar o atingimento dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro? Responde Oswaldo Canela Junior7:

"Para o Estado social atingir esses objetivos, faz-se necessária a realização de metas, ou programas, que implicam o estabelecimento de funções específicas aos Poderes Públicos, para a consecução dos objetivos predeterminados pelas Constituições e pelas leis8. Desse modo, formulado o comando constitucional ou legal, impõe-se ao Estado promover as ações necessárias para a implementação dos objetivos fundamentais. E o poder do Estado, embora uno, é exercido segundo especialização de atividades: a estrutura normativa da Constituição dispõe sobre suas três formas de expressão: a atividade legislativa, executiva e judiciária".

Afirma o Autor, com toda razão, que as formas de expressão do poder estatal são, por isso mesmo, meros instrumentos para a consecução dos fins do Estado, não podendo ser consideradas por si só. O primeiro dogma do Estado liberal a ser quebrado foi o da atividade legislativa, como sendo a preponderante sobre os demais poderes. E, acrescente-se: o segundo dogma, foi o da atividade jurisdicional prestada por um juiz que represente apenas la bouche de la loi.

Continua Oswaldo Canela Junior:

"E assim a teoria da separação dos poderes (art. 2° da CF brasileira) muda de feição, passando a ser interpretada da seguinte maneira: o Estado é uno e uno é seu poder. Exerce ele seu poder por meio de formas de expressão (ou Poderes). Para racionalização da atividade estatal, cada forma de expressão do poder estatal exerce atividade específica, destacada pela Constituição. No exercício de tais funções é vedado às formas de expressão do poder estatal interferência recíproca: é este o sentido da independência dos poderes".

Mas os poderes, além de independentes, devem também ser harmônicos entre si.

Logo, os três poderes devem harmonizar-se para que os objetivos fundamentais do Estado sejam alcançados. Por isso, ainda segundo Oswaldo Canela Junior, "cabe ao Poder Judiciário investigar o fundamento de todos os atos estatais a partir dos objetivos fundamentais inseridos na Constituição (art. 3° da CF brasileira)" grifei.

Tércio Sampaio Ferraz Junior lembra que o objetivo do Estado liberal era o de neutralizar o Poder Judiciário frente aos demais poderes9. Mas, no Estado democrático de direito o Judiciário, como forma de expressão do poder estatal, deve estar alinhado com os escopos do próprio Estado, não se podendo mais falar numa neutralização de sua atividade. Ao contrário, o Poder Judiciário encontra-se constitucionalmente vinculado à política estatal.

Ainda no conceito irrepreensível de Oswaldo Canela Junior:

"Por política estatal ou políticas públicas entende-se o conjunto de atividades do Estado tendentes a seus fins, de acordo com metas a serem atingidas. Trata-se de um conjunto de normas (Poder Legislativo), atos (Poder Executivo) e decisões (Poder Judiciário) que visam à realização dos fins primordiais do Estado".

"Como toda atividade política (políticas públicas) exercida pelo

Legislativo e pelo Executivo deve compatibilizar-se com a Constituição, cabe ao Poder Judiciário analisar, em qualquer situação e desde que provocado, o que se convencionou chamar de "atos de governo" ou "questões políticas", sob o prisma do atendimento aos fins do Estado (art. 3° da CF)", ou seja, em última análise à sua constitucionalidade.

O controle da constitucionalidade das políticas públicas pelo Poder Judiciário, assim, não se faz apenas sob o prisma da infringência frontal à Constituição pelos atos do Poder Público , mas também por intermédio do cotejo desses atos com os fins do Estado.

E continua o Autor:

"Diante dessa nova ordem, denominada de judicialização da política," (muito diferente, acrescente-se, da politização do Judiciário) "contando com o juiz como co-autor das políticas públicas, fica claro que sempre que os demais poderes comprometerem a integridade e a eficácia dos fins do Estado incluindo as dos direitos fundamentais, individuais ou coletivos o Poder Judiciário deve atuar na sua função de controle".

2. A posição dos tribunais brasileiros

Nossos tribunais assim têm feito: O Supremo Tribunal Federal reconheceu o dever do Estado de fornecer gratuitamente medicação a portadores do vírus HIV, sob o fundamento de que os poderes públicos devem praticar políticas sociais e econômicas que visem aos objetivos proclamados no art. 196 da CF, invocando precedentes consolidados da Corte10.

O mesmo entendimento foi adotado pelo Superior Tribunal de Justiça em diversas oportunidades, salientando-se o direito à integralidade da assistência à saúde a ser prestado pelo Estado, de forma individual ou coletiva11. O Tribunal, em outra decisão, afirmou que a Administração Pública se submete ao império da lei, até mesmo no que toca à conveniência e oportunidade do ato administrativo: uma vez demonstrada a necessidade de obras objetivando a recuperação do solo, cumpre ao Poder Judiciário proceder à outorga da tutela específica para que a Administração destine verba própria do orçamento para esse fim12.

Também o Tribunal de Justiça de São Paulo mostrou-se preparado na discussão a...

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