Tipificação das infracções

AutorInspector Tributário da DGCI
Cargo do AutorRui Miguel Marques Gonçalves
Páginas51-70

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Em face do que foi descrito, designadamente nos esquemas de trading e de serviços, somos do parecer que estamos perante uma infracção punível pelo art. 104º - Fraude Fiscal Qualificada e pelo art.º 103º - Fraude Fiscal por remissão daquele, ambos do RGIT, por os agentes contrariarem o disposto nos art. 17º - Determinação do Lucro Tributável e o art.º 23º - Custos ou Perdas, ambos do CIRC e o art. 5º - Rendimentos de Capitais e artº 22º - Englobamento do CIRS.

Somos ainda da opinião que é infringido - tendo em consideração o facto ilícito típico precedente da fraude fiscal - o art. 368º-A do CP, que prevê e pune o crime de branqueamento.

Desta forma, analisaremos de seguida estas infracções, enquadrando-as com os intervenientes e com as condutas verificadas nos esquemas apresentados.

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Fraude fiscal

Antes de mais, convém realçar que as condutas fraudulentas descritas não se coadunam com a elisão fiscal. Como refere o Professor Alberto Xavier "a elisão de direito internacional não pode confundir-se nem com a figura da simulação, nem com a da fraude, nem com a do abuso de direito. Com a simulação, porque nesta há sempre uma diver- gência entre a vontade real e a vontade declarada, enquanto na figura em causa os efeitos dos actos jurídicos correspondem precisamente à vontade real de quem os praticou; com a fraude, porque nesta há uma violação directa e frontal das normas jurídicas (falsas declarações, falso balanço, operações fictícias, etc.); com o abuso de direito, por não estar em causa um direito subjectivo cujo exercício seja anti-social ou danoso, mas uma esfera de liberdade do particular na escolha dos meios oferecidos pelo direito para a realização dos seus interesses."13

Bem jurídico tutelado pela fraude fiscal

O legislador português seguiu um modelo misto centrado por um lado na protecção do património fiscal do Estado e por outro no reconhecimento dos deveres de colaboração, informação e de verdade e lealdade fiscal.

Este modelo configura então dois níveis distintos: o bem jurídico protegido é constituído pelo património do Estado enquanto os deveres Page 53 de colaboração, informação e de verdade e lealdade fiscal formam o suporte negativo que assegura a protecção daquele bem.14

Conduta

A fraude fiscal é um crime de execução vinculada porquanto só o comete quem, visando a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias", siga uma das condutas tipificadas nas alíneas a) a c) do n.º 1 do art.º 103º do RGIT, a saber:

"

  1. Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;

  2. Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;

  3. Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas."

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Susana Aires de Sousa questiona: "Mas serão as circunstâncias previstas nestas alíneas taxativas ou meramente exemplificativas? Ao referir, no tipo legal, que a "fraude fiscal pode ter lugar" (itálico nosso) através da realização das condutas previstas nas alíneas que se seguem, poderíamos ser induzidos pela ideia de que o legislador teria optado por um elenco exemplificativo. Contudo, esta conclusão parece ser infirmada pelo próprio legislador ao estabelecer no primeiro número daquela norma que constituem fraude fiscal «as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo» (itálico nosso)".15

De acordo com os esquemas apresentados, um dos objectivos, - normalmente o principal - é a não entrega ou pagamento da prestação tributária, ao caso o IRC.

Não poderemos esquecer que mesmo que existam outros objectivos, como:

- retirada de dinheiros de empresas detidas por outros sócios, ou até empresas públicas;

- retirada de dinheiro tendo em vista "proteger" património dos credores em casos de falências; ou

- aquisição de bens por valores superiores de forma a "inflaccionar" a obtenção de subsídios,

raras serão as ocasiões em que subjacentes a estes esquemas não estarão também objectivos fiscais, em que o património do Estado é efectivamente lesado, ou pelo menos é susceptível de o ser.

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Para tal, os beneficiários recorrem à celebração de negócios simulados, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por inter- posição, omissão ou substituição de pessoas, conforme refere a alínea c) do n.º 1 do art.º 103º do RGIT.

"O conceito de negócio simulado resulta do art.º 240.º, n.º 1, do C.C., o qual exige a verificação simultânea de três requisitos: a) uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada; b) o intuito de enganar terceiros; c) um acordo entre declarante e declaratário, o que, segundo a doutrina dominante, não exclui a possibilidade de simulação em negócios unilaterais ou em actos jurídicos.

Como modalidades da simulação temos, em primeiro lugar, a simulação absoluta, que acontece quando os simuladores fingem concluir um determinado negócio jurídico e, na realidade, nenhum negócio querem celebrar. Existe apenas o negócio aparente, atrás do qual nada se oculta.

Outra modalidade da simulação é a relativa que, na sua versão subjectiva, se realiza mediante a interposição fictícia de pessoas: A simula um negócio com B que, por sua vez, simula um negócio com C, quando o verdadeiro negócio (o negócio dissimulado) é entre A e C. A simulação relativa acontecerá muitas vezes tendo por pessoa interposta uma sociedade-base ou uma "conduit company". A situação mais frequente será, porventura, a dos "esquemas" de refacturação. A pretende vender um bem a C, mas acorda com este efectuar uma venda simulada a B, uma sociedade-base sedeada num paraíso fiscal por si controlada, a um preço inferior, e que B, por sua vez, revenda a C pelo preço acordado entre este e A."16

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Com estes comportamentos, os agentes cometem o crime de fraude qualificada, conforme salienta o Acórdão n.º 3/2003, de 10 de Julho - Processo n.º 735/1999 - STJ:

...a fraude, mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes (claramente a cobrir a hipótese de simulação absoluta) ou por valores diferentes ou ainda com a inter- venção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente, merece tratamento autónomo, dentro da fraude qualificada, e também com explicitação de que certas falsificações são consumidas pelo crime de fraude (n.º 2 e 3 do artigo 104.º do RGIT)

Julgamos que neste ponto está ultrapassado o problema do concur- so de crimes, subscrevendo as doutas palavras de Augusto Silva Dias quando diz:

"Sobre o problema geral do concurso entre as incriminações fiscais e os crimes do CP, subscrevo a posição apresentada há muito por EDUARDO CORREIA, perfilhada também por FIGUEIREDO DIAS / / COSTA ANDRADE e por uma parte significativa da jurisprudência do STJ, segundo a qual o ilícito penal fiscal tem uma natureza especial em relação ao correspondente ilícito penal nuclear. Se apenas é lesado o património do fisco, há entre ambos os ilícitos um concurso aparente, absorvendo a fraude fiscal no caso concreto a ilicitude de todo o comportamento."17

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Crime de perigo

A fraude fiscal é um crime de perigo uma vez que o legislador, com as condutas tipificadas no art.º 103º do RGIT, não exige o efectivo dano ou lesão do bem jurídico - enquanto património fiscal do Estado. Desta forma, reconhece relevância penal às condutas ilegítimas "susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias" (itálico nosso).

"Entendemos que a incriminação prevista no artigo 103º do RGIT corresponderá, ao nível da estrutura típica, a um crime de perigo, na medida em que não exige para a realização do tipo o efectivo prejuízo das receitas fiscais e a consequente lesão do património do Estado, antes se basta com a colocação em perigo do bem jurídico."

O legislador "embora não exigindo a verificação, a posteriori, de um perigo concreto, precisou no tipo legal a necessidade de essas condutas serem susceptíveis de diminuírem as receitas fiscais."18

Ao utilizar a expressão "susceptíveis de causarem", a lei pressupõe o carácter perigoso das condutas".19

Tal facto quer dizer que sendo susceptível de pôr em causa o valor do imposto a pagar no final do exercício, a simples criação de tais esquemas é um acto preparatório do crime de fraude fiscal.

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Crime de resultado

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