A vinculação do segurador pela conduta do mediador

AutorLuís Poças
Páginas197-225

Page 197

Sendo certo, como vimos, que o mediador não é parte no contrato de seguro, o mesmo não é, por outro lado, estranho à negociação, celebração ou execução deste contrato. Ora, perante a relação negocial, inerente ao contrato de mediação de seguros, entre o segurador e o mediador (nas várias categorias que o mesmo pode assumir) importa apurar se, e em que medida, o segurador fica vinculado pela actuação do mediador junto do proponente ou tomador do seguro. É esse o objecto do presente capítulo.

IX 1 - Soluções de direito comparado

Neste quadro, começaremos por analisar, ainda que de forma muito sintética, algumas soluções adoptadas em outros ordenamentos jurídicos. A lei alemã sobre o contrato de seguro confere aos agentes poderes (de representação) para receber dos proponentes propostas de seguro e alterações; receber informações relevantes do tomador durante a vigência do contrato; entregar aos tomadores apólices de seguro; e receber prémios, caso possuam recibos com chancela do segurador. Com base nesta disposição desenvolveu-se a jurisprudência olhos e ouvidos, a partir de uma decisão do BGH, de 1987, nos termos da qual todos os factos que chegam ao conhecimento do agente, mesmo que comunicados oral- mente, no âmbito da sua actividade, vinculam o segurador (que não pode restringir os poderes de representação conferidos por lei ao agente). Por outro lado, caberá ao tomador o ónus de alegar ter prestado todas as informações relevantes, competindo ao segurador a prova do inverso. Esta jurisprudência não tem aplicação em caso de erro ou omissão manifestos ou em caso de fraude em conluio entre o tomador e o agente523.

A lei austríaca acolhe desde 1994 uma disposição segundo a qual o que é conhecido pelo agente vincula o segurador desde que aquele tenha os poderes de representação referidos a propósito da lei alemã (e que são os mesmos na lei austríaca)524. Page 198

Na lei espanhola, por seu turno, acolhe-se o princípio segundo o qual as comunicações efectuadas ao mediador, quer na fase pré-contratual, quer na de execução do contrato, consideram-se feitas directamente ao segurador, o mesmo se passando quanto ao pagamento dos prémios525.

Relativamente ao sistema jurídico francês a Cour de Cassation considera que, em virtude do princípio de representação do segurador, este fica vinculado pelos conhecimentos obtidos pelos agentes, designadamente as inexactidões e omissões constantes da proposta contratual526.

No direito italiano (n.º 1 do artigo 1745.º do Código Civil) apenas se consideram validamente feitas ao agente (e, portanto, vinculando o segurador) as declarações do tomador respeitantes à execução do contrato e reclamações atinentes ao incumprimento do contrato - e não as declarações pré-contratuais e informações prestadas ao agente, excepto se este tiver poderes para a celebração do contrato527.

Outras realidades haveria a referir, como a anglo-saxónica528 e a norte-americana529, onde se verificam princípios de protecção de terceiros pela aparência de representação do segurador. Embora as referências ao Direito comparado suscitassem um maior aprofundamento comparativo, o âmbito do presente trabalho e a extensão do texto impõem que passemos à análise no quadro do sistema jurídico português. Page 199

IX 2 - Vínculo do mediador à seguradora e responsabilidade civil

Relativamente ao ordenamento português, importa recordar que as três categorias de mediadores, como resulta do respectivo regime e, manifestamente, do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 144/2006, se caracterizam pelo grau de proximidade, dependência ou vinculação do mediador à empresa de seguros.

No pólo da maior proximidade, dependência ou vinculação situa-se o mediador de seguros ligado, que actua em nome e por conta do segurador e sob inteira responsabilidade do mesmo. A actuação em nome e por conta faz apelo ao instituto da representação. Porém, como decorre do artigo 4.º da Norma Regulamentar n.º 17/2006-R, o contrato de mediação pode conferir ou não poderes para celebrar contratos em nome da empresa de seguros, estando, em qualquer caso, vedado ao mediador o recebimento de prémios de seguro ou de somas destinadas aos tomadores de seguros530. O âmbito dos poderes (de representação) do mediador de seguros ligado será, assim, mais ou menos limitado, dependendo de uma definição em concreto. Por outro lado, importa definir o âmbito da actuação sob a inteira responsabilidade do segurador. Pensamos que o sentido útil da expressão será a atribuição, ao segurador, da responsabilidade pelo risco nos termos em que a mesma ocorre relativamente às relações comitente-comissário531.

Por seu turno, o agente de seguros exerce a sua actividade em nome e por conta de uma ou várias empresas de seguros, nos termos do contrato de mediação. Este, nos termos do artigo 8.º da Norma Regulamentar n.º 17/2006-R, pode configurar a atribuição de poderes de âmbito muito variável. Em concreto, poderemos estar perante situações de exclusividade que muito se aproximem da categoria de mediador de seguros ligado ou perante situações de elevada autonomia, que se traduzam no exercício da actividade junto de vários Page 200 seguradores num quadro próximo da categoria de corretor de seguros. Como no caso dos mediadores de seguros ligados, pensamos que a expressão em nome e por conta é utilizada em sentido impróprio, não comportando a necessária existência de poderes de representação. Assim, relativamente a esta categoria de mediadores, importará apurar, in casu, se o vínculo estabelecido com o segurador é passível de recondução a uma relação comitente-comissário.

Por último, no pólo oposto de dependência ou vinculação encontra-se a categoria de corretor de seguros, que exerce a actividade de forma independente e, portanto, com plena autonomia face às empresas de seguros. Para além de se encontrar fora da esfera de direcção e controlo do segurador532, o contrato firmado pelo corretor poderá ter por contraparte o cliente. Verificam-se, aliás, situações em que o corretor é remunerado directamente pelo cliente (honorários correspondentes aos serviços prestados) ficando os contratos de seguro sem comissionamento, em contrapartida de condições mais favoráveis (redução do prémio) para o tomador do seguro.

IX 3 - Responsabilidade objectiva do segurador

Relativamente ao nosso sistema jurídico, as soluções legais para a questão em análise - a vinculação do segurador pela actuação do mediador - decorrerão de vários parâmetros de análise. Desde logo, no quadro da responsabilidade aquiliana, importa apurar da existência ou não de poderes de representação daquele por este e da extensão desses poderes. Na verdade, dispõe o artigo 165.º do Código Civil que as pessoas colectivas respondem civilmente pelos actos ou omissões dos seus representantes, agentes ou mandatários nos mesmos termos em que os comitentes respondem pelos actos ou omissões dos seus comissários.

Ora, o Decreto-Lei n.º 144/2006 refere-se à inteira responsabilidade do segurador pela actuação do mediador de seguros ligado (alínea a) do artigo 8.º). Neste caso, ou na situação dos agentes de seguros, em que se verifica a existência de poderes de representação (portanto, uma actuação em nome e por conta do segurador, nos termos da alínea b) do artigo 8.º), será Page 201 possível identificar uma relação comitente/comissário533. Neste âmbito, e nos termos do artigo 500.º do Código Civil, verificar-se-á uma responsabilidade objectiva534 do segurador (comitente) por actos ilícitos e culposos do mediador (comissário), ou ainda uma estrita responsabilidade pelo risco ou pela prática de actos lícitos pelo mediador535. Os requisitos do preceito são, como decorre do n.º 1 do referido artigo, a existência de um vínculo recondutível à comissão, o de que a acção danosa resulte da função confiada ao comissário (no caso, a mediação de seguros)536 e de que sobre este recaia também uma obrigação de indemnizar (requisito da dupla imputação). Page 202

O regime analisado de responsabilidade objectiva fundamentar-se-á, de acordo com a teoria do risco537, nas vantagens, para o comitente, do recurso à actividade do comissário e do consequente dever de suportação das consequências danosas dessa actividade (ubi commoda ibi incommoda): «o comitente suporta, na sua esfera, o risco da imputação de danos que, por força da comissão, ocorram nos bens alheios»538. Por outro lado, verifica-se uma tutela do terceiro lesado por um acto recondutível (por via da comissão) à esfera do comitente. Em qualquer caso, na situação de responsabilidade objectiva da empresa de seguros pela prática de actos culposos do comissário, goza aquela de direito de regresso contra o mesmo, nos termos do n.º 3 do artigo 500.º. Desta forma, o segurador apenas garante ao terceiro lesado a ressarcibilidade do seu dano, não a suportando em definitivo539.

O regime da responsabilidade objectiva do segurador não afasta a sua eventual responsabilidade por factos ilícitos decorrente de uma conduta culposa, nomeadamente por culpa in eligendo (escolha do comissário), in instruendo (instruções dadas ao mesmo) ou in vigilando (fiscalização da respectiva actividade). Neste caso, a obrigação indemnizatória cabe integralmente ao comitente. Se, porém, ocorrer o concurso de culpas entre comitente e...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT