O princípio da boa-fé no direito do consumidor: uma breve abordagem comparatista entre Brasil e Argentina.

AutorRosalice Fidalgo Pinheiro - Frederico Eduardo Zenedin Glitz
CargoProfessora das Faculdades do Brasil (UNIBRASIL), Professora das Faculdades Integradas Curitiba (FIC) - Advogado, Professor das Faculdades do Brasil (UNIBRASIL)
Páginas133-150
1. Perspectivas da boa-fé no direito comparado

No cenário1, 2 jurídico, assiste-se a uma "efervescência"3 do princípio da boa-fé4, de modo a suscitar por parte dos juristas as mais diferentes apreciações, seja pelo sentido "subversivo"5 com o qual ele inunda o direito das obrigações, seja pelas dificuldades em conceituá-lo, o que lhe fez merecer a denominação de "une mer sans rivages"6 .

Para compreender o sentido e o alcance do qual se reveste o princípio da boa-fé no contexto acima descrito, empreende-se uma abordagem de seu estudo no âmbito do direito comparado, restrito a dois sistemas jurídicos: Brasil e Argentina. A investigação da recepção daquele princípio no direito privado desses países é motivada por uma pergunta que se coloca diante da falta de um Código de Defesa do Consumidor para o Mercosul: qual é o direito aplicável?

Lançando suas raízes no Direito Romano, a bona fidei iudicia atuou como um elemento gerador de novas formas contratuais, transpondo os limites do formalismo romano. Tratava-se de um elemento catalisador do conteúdo econômico do contrato, diante das necessidades resultantes da aceleração do tráfego jurídico. Eis os contornos de um canal de comunicação entre os fatos e o Direito, conferidos à boa-fé, que se repetiram mais tarde em época e lugares diversos.

Em meados do século XX, com vistas a ultrapassar os limites de uma teoria contratual clássica, a boa-fé em sua vertente objetiva7 é um dos principais instrumentos utilizados pelos juízes para construção de uma "nova teoria contratual", tornando presente as palavras de Clóvis do COUTO E SILVA: "Em nossos dias, cresceu extraordinariamente em importância o da boa fé, em virtude da revisão por que passou a teoria geral das obrigações, sob o influxo de novas tendências jurisprudenciais e doutrinárias, motivadas, em grande parte, por uma vigorosa reação às concepções do positivismo jurídico."8 Cabe agora, verificar como isto se processa.

Movidos pela ascensão da autonomia da vontade como dogma absoluto e limitado pelo estreito diálogo com o texto da lei, moldado pela Escola da Exegese, os intérpretes do Código Civil francês de 1804, esvaziaram o artigo 1134, 3, de suas potencialidades. Ao enunciar que: "As convenções legalmente formadas têm força de lei entre as partes. Elas não podem ser revogadas senão por consentimento mútuo, ou por causas autorizadas pela lei.

Elas devem ser executadas de boa-fé"9, tal dispositivo é considerado como uma porta aberta ao arbítrio judicial, capaz de ameaçar a intangibilidade contratual. Isto leva doutrina e jurisprudência a se lançarem em uma tarefa de minimização da boa-fé, restando-lhe o significado de fidelidade ao pactuado pelo contrato, sendo absorvida pelo voluntarismo jurídico. Diante da "hipertrofia da autonomia da vontade", assevera Jean-François ROMAIN, delineia-se a "atrofia da boa-fé"10.

Enquanto no cenário jurídico francês assistia-se à sua atrofia, o mesmo princípio florescia na prática comercial alemã. Na segunda metade do século XIX, a intensificação das relações comerciais no Ocidente alemão fez da boa-fé objetiva um "princípio geral do tráfego mercantil", pondera MENEZES CORDEIRO. As decisões dos tribunais alemães reportam-se à bona fides romana, que em sua acepção objetiva, limita o exercício de posições jurídicas.

Transposta da jurisprudência para a codificação alemã que entrou em vigor em 1900, a boa-fé está presente no BGB sob a forma de uma cláusula geral, no § 242: "o devedor deve executar a prestação como exige a boa-fé em consideração aos usos"11.

Sob as influências da ética da cortesie germânica e da bona fidei iudicia romana, a boa-fé ganhou contornos diversos, que permitiram contrapô-la à sua vertente francesa. Ao lado de sua acepção subjetiva, destaca-se a boa-fé objetiva.

Ocorre que as potencialidades dessa cláusula geral forma esvaziadas pela "inutilidade da interpretação positivista", a que se refere Franz WIACKER. Eis que tal técnica legislativa não se adapta ao método da subsunção, predominante no positivismo legalista.

Porém, no decurso do século XX, o direito alemão assiste a uma inversão na interpretação da cláusula geral de boa-fé pelas cortes germânicas do Pós-guerra. O movimento de recuo ao formalismo oitocentista atua na "transformação da moral econômica liberal numa outra adequada às idéias de estado social", declara Franz WIEACKER, restando uma via aberta à boa-fé.

A clara delimitação dos direitos e liberdades individuais em oposição ao poder público é abandonada em favor de uma "social engeneering", requerendo a intervenção do

Estado na esfera privada. Diante das cláusulas abertas, os juízes assumem uma função criadora delineando a concretização da boa-fé objetiva, o que encerra sua aplicação em fórmulas rígidas, que superam a imprecisão de seus contornos. Na Alemanha, especialmente Franz Wieacker e Wolfgang Siebert dedicam-se à tarefa de delimitar suas funções: integrativa, interpretativa, equilíbrio e controle ao exercício de direitos.

Em atenção à primeira dessas funções, a boa-fé objetiva age como um "topos subversivo", pondera Judith MARTINS-COSTA, projetando novos contornos para a relação jurídica obrigacional, de estática à dinâmica. Tal concepção de obrigação assume que o esquema obrigacional não se esgota na soma de posições antagônicas, antes, encontra tradução em uma relação de cooperação entre credor e devedor, projetando ao lado dos deveres principais e secundários de prestação, deveres acessórios de conduta. Traduzidos na tríplice classificação lealdade, informação e proteção, tais deveres anexos ou instrumentais não decorrem da lei ou da vontade, mas da boa-fé. Estão presentes desde as tratativas, durante todo o contrato, e até mesmo, após sua conclusão, rompendo o dualismo da tipicidade da responsabilidade civil em contratual e extracontratual, para novas formas como as responsabilidades pré e pós-contratual.

Com vistas a determinar o alcance dos direitos e obrigações das partes em sua função hermenêutica, a boa-fé rompe o dogma da vontade. Eis que a tutela desloca-se do declarante para a confiança gerada no destinatário pela manifestação de vontade. Nessa ordem de idéias, interpretar o contrato segundo a boa-fé é optar pelo sentido que seja mais favorável à parte débil do contrato, que propicie a conservação deste último, ou que aquele princípio aponte como o mais razoável.

Em sua função de equilíbrio, a boa-fé quebra a intangibilidade contratual e relativiza o "pacta sunt servanda". A destruição da relação de equivalência entre as prestações e o desaparecimento do fim essencial do contrato permitem a revisão, e por vezes, a resolução do contrato. Eis rompem o equilíbrio tutelado pela boa-fé e pela justiça contratual substancial.

Sob a função de controle ao exercício de direitos, o voluntarismo jurídico sucumbe à boa-fé, uma vez que tal exercício mostra-se inadmissível quando contraria a confiança gerada na contraparte, constituindo-se em um venire contra factum proprium. Trata-se de uma nova roupagem impressa pela boa-fé à figura do abuso do direito12.

Da codificação francesa à criação jurisprudencial germânica, delineia-se o percurso da boa-fé de "fórmula fazia" a "fórmula mágica" das obrigações. Ocorre que tal percurso encontrou recepção em outros sistemas jurídicos, entre os quais, o brasileiro e o argentino.

2. A boa-fé no direito brasileiro

Não obstante as referências contidas no direito pré-codificado, a boa-fé não ingressou no Código Civil brasileiro de 1916: as referências esparsas nos artigos 1443 e 144413, não foram suficientes para revelar o princípio em sua vertente objetiva, nos moldes do § 242 do BGB. Porém, a leitura subjetivada, por parte da doutrina e da jurisprudência, conferira-lhe o sentido de boa-intenção. Tal fato justifica-se na projeção de uma racionalidade codificada, afeta aos valores do liberalismo para a doutrina e jurisprudência brasileiras, sob os moldes do positivismo jurídico, de tal modo, que assevera Antônio Junqueira AZEVEDO:

"Há, nessa omissão do Código Civil brasileiro, um reflexo da mentalidade capitalista da segunda metade do século XIX, mais preocupada com a segurança da circulação e desenvolvimento das relações jurídicas do que com a justiça material dos casos concretos, porque a verdade é que o Código Comercial brasileiro, muito anterior ao Código Civil (o Código Comercial é de 1850), já tinha regra genérica sobre a boa-fé - é o artigo 131, sobre interpretação contratual."14

Em um momento no qual já se considerava a codificação "modo superado de legislar", palavras de Rodolfo Sacco, a recodificação de 2002 positiva no cenário jurídico a cláusula geral de boa-fé no artigo 422: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".

Reunindo influências do BGB, do Código Civil italiano de 1942 e do português de 1966, a nova codificação brasileira conjuga a permanência da tradição jurídica anterior, impressa por Clóvis Beviláqua e a Escola do Recife, com as inovações alcançadas pela jurisprudência. Por conseguinte, a boa-fé é acolhida em suas funções interpretativa e de controle ao exercício de prerrogativas individuais: o artigo 11315 representa uma superação da teoria da vontade na orientação da interpretação do contrato, e conseqüente tutela da confiança da contraparte. E como forma de especificar tal tutela, acolhe-se no artigo 42316, a interpretação do contrato de adesão de modo mais favorável ao aderente, o que se constitui em positivação de construção jurisprudencial. No artigo 17017, pode-se ainda, extrair a regra de interpretação que favoreça a conservação do contrato, que também se fundamenta na boa-fé. A função de controle é acolhida no artigo 18718, sob os moldes do Código Civil português e seu artigo 334.

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