A imprescritibilidade da ação de cessação nas relações de consumo: uma abordagem comparada dos ordenamentos jurídicos espanhol e brasileiro

AutorAdriano Sant'Ana Pedra
CargoDoutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP, Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória FDV
Introdução

A prescrição e a decadência são institutos utilizados em nome da segurança jurídica.

Mas devem ser analisados com reservas, principalmente quando se trata de sua incidência na proteção de direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. O uso desmedido destes institutos, sem o devido cuidado e conhecimento, pode nos levar a situações absurdas, sacrificando o coletivo em prol do individual, provocando injustiças na grande maioria dos casos.

A legislação espanhola não olvidou desta questão. A Lei Geral para a Defesa dos Consumidores e Usuários (LGDCU)1 tratou de dispor expressamente acerca da imprescritibilidade da ação de cessação nas relações de consumo, que é o objeto de estudo deste trabalho. A ação de cessação objetiva obter uma sentença que condene o demandado a cessar uma conduta e proibir sua reiteração futura.

Todavia, o ordenamento jurídico brasileiro não tratou do tema da mesma forma. A Lei de Ação Civil Pública (LACP)2 não dispõe sobre prazos de decadência ou prescrição e disto também não cuidou o Código de Defesa do Consumidor (CDC)3 especificamente para as demandas coletivas.

Importa-nos assim analisar se e como os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos extinguem-se pelo não exercício durante um decurso de tempo previsto em lei (decadência), ou, ainda que subsista o direito, se e como decorre o prazo para que seu titular possa invocá-lo ativamente em juízo (prescrição). Também devem ser avaliados a necessidade e os efeitos da previsão expressa na legislação da imprescritibilidade deste tipo de ação.

Esta análise será feita considerando que direitos de terceira geração não são direitos que se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, mas sim de toda a coletividade.

Com este intento, traçaremos inicialmente os aspectos gerais acerca dos institutos da prescrição e da decadência. A seguir avaliaremos os bens tutelados pela defesa coletiva, especificamente, procurando identificar as suas características, buscando subsídios para respondermos a nossa questão. Assim, considerando a distinção existente entre os direitos metaindividuais, será estudada a relação entre a titularidade dos direitos metaindividuais e a legitimidade para propor a ação de cessação, tratando-se de interesses ou direitos difusos, de interesses ou direitos coletivos, e de interesses ou direitos individuais homogêneos. Ao final, serão lançadas as principais conclusões decorrentes deste estudo.

1. Prescrição e decadência nas relações de consumo

Não se pretende aqui fazer um estudo pormenorizado dos institutos da prescrição e da decadência. Traçaremos apenas os seus aspectos gerais, frisando suas características mais marcantes, pelas quais se diferenciam um do outro, para sabermos como iremos proceder quanto aos direitos coletivos e difusos, em especial nas relações de consumo4.

A segurança jurídica é princípio diretor e basilar na salvaguarda da pacificidade e estabilidade das relações jurídicas. Ela é fundamento do Estado de Direito, elevada que está ao altiplano axiológico. Como o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida, o princípio da segurança jurídica é considerado como elemento constitutivo do Estado de Direito5.

O fator tempo tem grande influência nas relações jurídicas afloradas no seio da sociedade, pois não se admite a eterna incerteza nas relações intersubjetivas a que o direito confere juridicidade. Podemos dizer que o decurso do tempo é um dos acontecimentos naturais ordinários que maior influência exerce sobre as relações jurídicas.

Sílvio Rodrigues6 leciona que "é do interesse da ordem e da paz social liquidar o passado e evitar litígios sobre atos cujos títulos se perderam e cuja lembrança se foi". É necessário que as relações jurídicas consolidem-se no tempo, havendo um interesse social em que situações de fato que o tempo consagrou adquiram juridicidade, para que sobre a comunidade não paire, indefinidamente, a ameaça de desequilíbrio representada pela demanda.

Nesse sentido, a prescrição e a decadência são institutos assecuratórios da segurança jurídica. Afinal, as relações jurídicas têm que proporcionar estabilidade e confiança aos destinatários do ordenamento jurídico, pois o direito é concebido para gerar a paz no convívio social. Tais institutos são necessários para que haja tranquilidade na ordem jurídica, havendo consolidação dos direitos. Nesse sentido, o decurso do tempo terá influência na extinção de certos direitos, para que haja a necessária paz, ordem, segurança e certeza jurídica. No dizer de San Tiago Dantas7, "esta influência do tempo consumido pelo direito pela inércia do titular serve a uma das finalidades supremas da ordem jurídica que é estabelecer a segurança das relações sociais". Sem a prescrição e a decadência, a qualquer momento poder-se-ia voltar ao debate de superadas pretensões e a antigos litígios.

A esse respeito, anota Jean-Louis Bergel8 que, "para garantir a segurança jurídica, cumpre que a ordem estabelecida não possa ser contestada incessantemente e que as situações jurídicas ou de fato adquiram ao cabo de certo tempo uma estabilidade suficiente". Assim, decorridos os prazos necessários para permitir aos interessados reivindicar seus direitos ou contestar as situações estabelecidas, as coisas precisam ficar cristalizadas. Nesse sentido a lei estabelece prazos cuja inobservância implica a prescrição dos direitos, ou a perda deles, e de ações na justiça, ou prazos em cuja expiração certas situações deixam de poder ser contestadas e certos direitos são considerados adquiridos. A lei impõe ainda, a fim de evitar o prolongamento nefasto de situações precárias, e para a consumação de certas formalidades ou para o desenrolar dos processos, prazos destinados a ritmar-lhes o curso.

Mas não é apenas o decurso do tempo que deve ser considerado, mas este aliado ao desleixo, à negligência do sujeito, que permite a outrem a negação prática da relação jurídica. Afinal, a prescrição e a decadência visam a punir a inércia de um titular; alguém que tem um direito, mas não o usa. Neste caso, a faculdade que a lei põe nas mãos do titular é então atingida pela prescrição ou pela decadência, o que os antigos exprimiam num brocardo: juge silentium, diuturnum silentium, jugis taciturnitas9.

Deve-se assim buscar o fundamento da prescrição e da decadência na tranquilidade da ordem jurídica, na paz social10. Assim, se o sujeito ativo se mantém inerte, por longo tempo, deixando que venha a se constituir uma situação contrária ao seu direito, seria permanecer em perpétua incerteza a vida social se for permitido que ele possa, mais tarde, reviver o passado. Há um interesse de ordem pública no afastamento das incertezas em torno da existência e eficácia dos direitos, e este interesse justifica o instituto da prescrição. Assim, busca-se evitar uma perturbação ao sossego público, considerado mal maior do que o sacrifício do interesse individual.

Antonio Luiz da Camara Leal, em obra clássica11, elenca quatro condições elementares da prescrição: existência de uma ação exercitável (actio nata), inércia do titular da ação pelo seu não-exercício, continuidade dessa inércia durante um certo lapso de tempo, e ausência de algum fato ou ato, a que a lei atribua eficácia impeditiva, suspensiva ou interruptiva do curso prescricional.

Embora tanto a prescrição quanto a decadência visem a manter a certeza e a segurança nas relações jurídicas, com paz e ordem na sociedade, elas não se confundem.

Mesmo não sendo a nossa proposta traçar critérios diferenciadores de ambos os institutos, o que demandaria trabalho de fôlego12, convém fazer algumas anotações a respeito, para não ocultar a complexidade de tratamento desta controvertida matéria.

San Tiago Dantas13 advertia que a decadência e a prescrição são institutos completamente diversos. A prescrição geralmente consiste no decurso de um prazo que se interrompe, que se suspende, podendo assim recomeçar a contar muitas vezes, e que as partes interessadas precisam alegar para que o juiz dela tome conhecimento. Por outro lado, a decadência constitui prazo fatal, nada interrompendo, nada suspendendo e, quando decorrem, o juiz a pronuncia de ofício, sem ser necessário que ninguém a alegue.

Orlando Gomes14 conceitua prescrição como o modo pelo qual um direito se extingue em razão a inércia, durante certo lapso de tempo, do seu titular, que, em consequência, fica sem ação para assegurá-lo. O autor instrui que, para ocorrer a prescrição, é necessário que haja a inércia do titular e o decurso do tempo. Ou seja, é preciso que o titular do direito não o exerça e que a inatividade se prolongue por algum tempo.

Caio Mário da Silva Pereira15 afirma que a prescrição conduz à perda do direito pelo seu titular descuidado, no final de determinado decurso de tempo, podendo ser encarada como força destrutiva. "Perda do direito, dissemos, e assim nos alinhamos entre os que consideram que a prescrição implica algo mais do que o perecimento da ação". Explica ele que, no direito romano, onde a princípio não se admitia a prescrição, quando foi consagrada, entendeu-se que alcançava a actio, subsistindo o direito. O Código Civil brasileiro revogado pronunciava-se no mesmo sentido, falando sempre em prescrição da ação (arts. 177 e 178). Entretanto, pelo efeito do tempo, aliado à inércia do sujeito, é o próprio direito que perece. O titular não pode reclamá-lo pela ação, porque...

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