A repetição de indébito em dobro da cobrança indevida derivada de cláusulas contratuais abusivas, no ordenamento consumerista brasileiro

AutorMagno Frederivi Gomes/Mariana Cordeiro Santos
CargoPós-doutor em Direito Público e Educação pela Universidade Nova de Lisboa-Portugal/Egressa de Direito da PUC Minas São Gabriel. Advogada
1. Introdução

Este artigo tem por objeto a análise da repetição de indébito em dobro, quando é declarada a nulidade de cláusulas contratuais abusivas. Ressalta-se que o tema guarda relação com o Direito do Consumidor, bem como com o Direito Civil e o Processo Civil, sem se desprender do estudo dos princípios gerais de direito. De maneira que se trata de uma tutela jurídica diferenciada.

Assim, quando os fornecedores agem de forma abusiva na elaboração dos contratos, pela imposição de cláusulas "irreais" aos seus consumidores, o que, de certo modo, configura cobrança indevida, eles não seriam justamente punidos se não incidisse a restituição das prestações cobradas em dobro. A referida prática, se não for exemplarmente sancionada, gerará um ciclo vicioso e estimulará ainda mais as práticas desiguais por parte dos fornecedores. Nesse aspecto, por que não defender a incidência da dobra na repetição de indébito no âmbito em questão? No decorrer desta exposição espera-se oferecer a resposta para tal questionamento.

A escolha de tal tema justifica-se pelas práticas abusivas de alguns fornecedores, principalmente no que se refere aos contratos de consumo, o que prejudica o consumidor, que representa, em regra, a parte mais fraca da relação jurídica estabelecida.

O desenvolvimento do trabalho, ora exposto, se dará por meio da análise da legislação pátria: Constituição da República de 1988 (CR/88), Código de Defesa do Consumidor (CDC), Código Civil de 2002 (CC/2002) e do Código de Processo Civil (CPC); e, ainda, por intermédio do estudo de doutrina, constante em livros e periódicos especializados, bem como jurisprudência. De maneira que foi desenvolvida pesquisa cuja vertente metodológica é a teórico-documental, exaurindo a parte legal que trata do tema abordado, sob uma perspectiva dogmática, empregada como forma de análise dos resultados.

Ao se objetivar uma maior compreensão do problema proposto, serão abordados aspectos importantes, como por exemplo, o conceito, a previsão legal, o objetivo, as características da repetição de indébito e, ainda, o regime de nulidades. Posteriormente, será analisado o tema propriamente dito, qual seja, o cabimento da repetição de indébito em dobro em caso de nulidade contratual por abusividade do fornecedor. Busca-se definir o que de fato vem a ser o instituto da repetição de indébito e qual a relação existente entre ele e a nulidade de cláusulas contratuais ditas leoninas.

2. A repetição de indébito

A repetição de indébito é instituto de Direito privado que tem previsão legal tanto no CC/2002 quanto no CDC.

No contexto do CC/2002, a repetição de indébito consta no Capítulo III, do Livro VII do diploma em questão, intitulada como "do pagamento indevido", nos seus arts. 876 e seguintes.

Dessa forma, considera-se ter havido pagamento indevido quando o devedor paga à pessoa estranha à da relação obrigacional originária, ou seja, quando ela recebe o que não lhe era devido. Assim, prevê o art. 876, do CC/2002 que: "todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir; obrigação que incumbe àquele que recebe dívida condicional antes de cumprida a condição"1.

O pagamento indevido reporta-se à idéia de que "quem paga mal paga duas vezes". Todavia, tal expressão não pode ser entendida em sentido literal, vez que se estaria permitindo o enriquecimento ilícito da pessoa que recebeu a contraprestação indevidamente. Desse modo, tem-se que o devedor continua obrigado a pagar a dívida com relação ao credor correto, porém, tem o direito de reaver o que pagou indevidamente junto ao suposto credor, isto é, tem o direito de repetir o indébito. A pessoa que recebeu indevidamente terá a obrigação de restituir o devedor da relação principal, com base nos termos do art. 884, do CC/2002, que dispõe: "aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários"2.

Veja-se o que ensina Fiúza (2004) acerca do pagamento indevido:

[...] Quem paga mal paga duas vezes. Em outras palavras, se pagar à pessoa errada, devo pagar novamente à pessoa certa. [...] Quem paga mal tem direito a repetir o indébito, ou seja, se pago à pessoa errada, devo pagar novamente à pessoa certa, mas fico com o direito de recobrar o que paguei por engano à pessoa errada. Caso contrário, estaria ocorrendo enriquecimento ilícito3.

Com isso, não havendo a restituição espontânea pelo suposto credor, nascerá, para o devedor originário, o direito subjetivo público de ajuizar ação de locupletamento ilícito.

A referida demanda tem natureza cognitiva e segue o procedimento comum ordinário. Contudo, a repetição de indébito, na forma simples, não constitui objeto de análise do presente trabalho, vez que a discussão, que ora se propõe, é tão somente com relação à dobra da cobrança indevida (sanção civil).

Assim, vale ressaltar que o pagamento indevido dá ensejo à repetição de indébito em sua forma simples, não havendo previsão legal com relação à dobra (repetição de indébito em dobro), no que tange ao capítulo do "pagamento indevido"4. Não obstante, o CC/2002 prevê, em seu art. 940, a possibilidade de ser atribuída ao credor a obrigação de indenizar o devedor, em virtude dele estar demandando por dívida já paga, no todo em parte. A mencionada punição corresponderá ao dobro do que foi cobrado na esfera judicial.

Com relação às diferenças existentes entre os institutos previstos nos arts. 876 e 940 do CC/2002, verifica-se que, no primeiro, o erro do pagamento é imputado ao devedor, enquanto que, no segundo, o erro refere-se a uma cobrança indevida, ou seja, o erro é do credor. Mas a diferença substancial é a previsão da dobra no segundo instituto, sendo uma sanção civil.

Feitas essas considerações, é importante frisar que, assim como no CC/2002, há no CDC previsão expressa de repetição de indébito em dobro, sendo ela o objeto deste trabalho.

2.1. Conceito e natureza jurídica da repetição de indébito em dobro

Antes de adentrar na discussão que se propõe, faz-se necessário algumas considerações acerca do instituto ora estudado.

Segundo Almeida (2005), a repetição de indébito constitui espécie de punitives damages, ou seja, "indenização fixada com o intuito de punir o agente da conduta causadora do dano cujo ressarcimento é autorizado pela lei em favor da vítima"5.

Mais adiante o autor (2005) assevera que a tradução da expressão "repetição de indébito", não condiz com o objetivo do instituto em questão. Isso porque a expressão significa "danos punitivos"6. Porém, não se trata de danos, pelo contrário, refere-se a uma sanção aplicada ao credor que "demandar"7 por dívida já paga ou ao fornecedor que cobra indevidamente de seu consumidor, ou seja, foge do seu dever de cuidado, o que justifica a imposição de tal sanção.

Vale ressaltar que a sanção civil é uma obrigação imposta ao infrator, em virtude do dano por ele praticado.

Então se conclui que a repetição de indébito em dobro tem natureza jurídica de sanção civil com finalidade punitiva, o que não é vedado no ordenamento jurídico brasileiro, já que há previsão legal permitindo a imposição da mencionada punição civil.

Assim, prevê o art. 42, parágrafo único, do CDC, a possibilidade da incidência da sanção civil, nele definida como repetição de indébito, em havendo cobrança indevida por parte do fornecedor ao consumidor que compõe a relação de consumo. Do mesmo modo, dispõe o art. 940 do CC/2002, quando estabelece que o credor que demanda por dívida já paga deverá indenizar o devedor no valor correspondente ao dobro do que foi cobrado indevidamente. Os citados dispositivos legais são compatíveis com o princípio da legalidade: nulla poena sine lege, constante no art. 5°, inciso II, da CR/88.

Acerca do objetivo e da natureza jurídica do instituto, veja-se o que menciona Marques, Benjamin e Miragem (2006):

Prevista como uma sanção pedagógica e preventiva, a evitar que o fornecedor se "descuidasse" e cobrasse a mais dos consumidores por "engano", que preferisse a inclusão e aplicação de cláusulas sabidamente abusivas e nulas, cobrando a mais com base nestas cláusulas, ou que o fornecedor usasse de métodos abusivos na cobrança correta do valor, a devolução em dobro acabou sendo vista pela jurisprudência, não como uma punição razoável ao fornecedor negligente ou que abusou de seu "poder" na cobrança, mas como fonte de enriquecimento sem causa do consumidor8.

Portanto, a repetição de indébito em dobro não objetiva tão somente a restituição daquela quantia paga indevidamente, mas a imposição da sanção civil, denominada aqui como dobra, a fim de que o fornecedor ou credor seja punido, em razão da sua prática abusiva.

2.2. Previsão legal e características do direito de repetir em dobro

O consumidor cobrado indevidamente faz jus à repetição de indébito em dobro, podendo esse crédito equivaler ao valor integral ou apenas ao excesso pleiteado. Dispõe o art. 42, do CDC:

Art. 42 CDC. Na cobrança de débito, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável9.

Apesar de se tratar de cobrança de...

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