Início e desenvolvimento da instância

AutorHelder Martins Leitão
Cargo do AutorAdvogado
Páginas11-32

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Na técnica jurídica, o termo instância pode e tem, efectivamente, duas acepções, duas moldagens:

Uma a reportar-se aos diversos graus de jurisdição admitidos na hierarquia judiciária e, então,

tribunal de 1.ª instância 1

tribunal de 2.ª instância 2

Outra

a significar a própria relação jurídico-processual, a acção em exercício e tramitação confundindo-se, por vezes, com o processo - em sua exteriorização material -

e, então,

arts. 264.º a 301.º C.P.C. 3

e é nesta que vai incidir a nossa análise, sendo o mote de partida o disposto no n.º 1, do art. 264.º do C.P.C.:

«Às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções.» Page 12

É a tradução em letra de um dos componentes do princípio dispositivo 4 - o ónus processual.

Aliás, mais, expressivamente, denunciado na redacção do mesmo dispositivo anterior aos Decretos-Lei n.os 329-A/95 e 180/96, de 12/12 e 25/9, respectivamente - «a iniciativa e o impulso processual incumbem às partes».

Pois é:

o ónus processual não consiste, unicamente, na necessidade que tem o autor de propôr a acção em juízo; proposta esta, ele continua a fazer sentir o seu peso, porque é, principalmente, às partes que cumpre, em cada momento, exercer a actividade necessária para que o processo siga uma tramitação e atinja a respectiva finalidade; articulando, requerendo e produzindo provas, discutindo, o autor e o réu, fornecem ao juiz os materiais de conhecimento que hão-de habilitá-lo a emitir a sentença.

Com José Lebre de Freitas 5

Trata-se do aspecto principal do princípio da controvérsia: às partes cabe a formação da matéria de facto da causa, mediante a alegação, nos articulados, dos factos principais, isto é, dos que integram a causa de pedir, fundando o pedido, e daqueles em que se baseiam as excepções peremptórias. Sem prejuízo de os factos da causa poderem ser alegados por qualquer das partes, cada uma tem o ónus da alegação daqueles que têm um efeito que lhe é favorável (alegação dos factos constitutivos do direito a cargo de quem se arroga tê-lo - art. 467.º-1-c - e dos factos impeditivos, modificativos e extintivos a cargo da contraparte - art. 493.º-3), cuja inobservância dá lugar, consoante o caso, à improcedência da acção ou à improcedência da excepção, sem prejuízo ainda de a não individualização da causa de pedir pelo autor (art. 498.º-4), implicando violação do ónus da substanciação, dar lugar à ineptidão da petição inicial (art. 193.º-1-a).

Com Manuel Andrade: 6 em sentido lato, o princípio dispositivo, enquanto contraposto ao princípio inquisitório 7 ou da oficialidade, 8 significa que as partes dispõem do processo, como da relação jurídica material. Page 13

O processo é coisa ou negócio das partes (concepção privatística, contratualista ou quase-contratualista do processo).

É uma luta, um duelo entre as partes que apenas tem de decorrer segundo certas normas. 9

O juiz arbitra a pugna, controlando a observância dessas normas e assinalando e proclamando o resultado 10 (concepção duelística ou «guerresca» do processo).

Donde a inércia, inactividade ou passividade do juiz, 11 em contraste com a actividade das partes. 12

Donde também que a sentença procure a verdade formal (intra-processual) e não a verdade material (extra-processual).

Era este, com efeito, o panorama que emanava do direito adjectivo anterior às reformas legislativas de 1995 e 1996. 13

E hoje, que dizer?

Bem, o princípio dispositivo continua a imperar, mas mitigado pelo inquisitório ou da oficialidade, que lhe vem à ilharga.

Aliás, ao anúncio do princípio dispositivo - art. 264.º - logo, lhe sobrevem o princípio do inquisitório - art. 265.º.

Assim mesmo, paredes-meias.

Presentemente, as partes já não dominam quase por completo o processo civil. À sua iniciativa, impulso e condução, levantam-se, principalmente quanto a estes, restrições de vária espécie e escalão.

Daí, a forma diversa de redigir - como, acima, demos conta - do art. 264.º do C.P.C.. A redacção anterior, mais grudada ao princípio dispositivo, em seu sentido académico; a actual, de acordo com o que, presentemente, se vaza no C.P.C..

O princípio dispositivo - repete-se - é, agora, pálida figura do que o foi, miragem que se quedou, tão-só, pelo menos, em toda a sua força, no princípio do pedido. 14

o processo só inicia sua marcha sob o impulso da parte

Aquela supra aludida preocupação de obtenção da verdade formal (intra-processual), esvai-se em grande parte, dando espaço a um outro objectivo - alcance da verdade material 15 (extra-processual). Page 14

Assim e repetindo: 16 às partes cabe, em exclusivo, definir o objecto do litígio através da dedução das suas pretensões - ou seja, enunciar o pedido ou pedidos formulados por via da acção ou da reconvenção - e da correlativa alegação dos factos que integram a causa de pedir ou que sirvam de fundamento a eventuais excepções, de tal modo que, em princípio, o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes.

Todavia, para além da atendibilidade dos factos que não carecem de alegação e de prova 17 e do dever de obstar ao uso anormal do processo, 18 reconhece-se, agora, ao juiz a possibilidade de investigar, ex officio, os factos instrumentais e de os utilizar quando «resultem da instrução e discussão da causa». 19

Em suma - na perspectiva de Abílio Neto 20 - há aqui uma distinção fundamental entre, por um lado, factos essenciais quer à procedência da pretensão formulada pelo autor, quer à procedência seja da excepção, seja da reconvenção deduzidas pelo réu e, por outro, os factos meramente instrumentais: quanto aos primeiros, funciona em pleno o princípio da auto-responsabilidade das partes, enquanto emanação da regra do dispositivo; já quanto aos segundos, o tribunal pode suprir a negligência ou inépcia das partes, carreando-os para o processo e sujeitando-os a prova.

Mais:

«Serão ainda considerados na decisão os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório». 21

Na prática, será um problema, motivo de querelas sem fim, de atrasos processuais, o apuro da balização da actuação do tribunal, atenta a frágil compartimentação entre factos essen- ciais, factos complementares àqueles, concretizações de factos alegados e factos instrumentais. Page 15

Por isso, concordámos com Abílio Neto 22 quando prevê «um sem número de discussões».23

A intenção de refrear a aplicabilidade do princípio dispositivo, ultrapassa as simples restrições a que atrás se fez referência, para mesmo trazer à colação o princípio do inquisitório.

Entregando ao juiz, concretamente, a sanação de excepções dilatórias. 24

Exemplos:

art. 8.º C.P.C.

a falta de personalidade judiciária das sucursais, agências, filiais, delegações ou representações pode ser sanada mediante a intervenção da administração principal e a ratificação ou repetição do processado.

art. 31.º-A C.P.C.

ocorrendo coligação sem que entre os pedidos exista a conexão exigida pelo art. 30.º, 25 o juiz notificará o autor para, no prazo fixado, indicar qual o pedido que pretende ver apreciado no processo, sob cominação de, não o fazendo, o réu ser absolvido da instância quanto a todos eles.

art. 31.º, n.º 4 C.P.C.

se o tribunal, oficiosamente ou a requerimento de algum dos réus, entender que, não obstante a verificação dos requisitos da coligação, há inconveniente grave em que as causas sejam Page 16 instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente, determinará, em despacho fundamentado, a notificação do autor para indicar, no prazo fixado, qual o pedido ou os pedidos que continuarão a ser apreciados no processo, sob cominação de, não o fazendo, ser o réu absolvido da instância quanto a todos eles. 26

art. 31.º-B C.P.C.

é admitida a dedução subsidiária do mesmo pedido ou a dedução de pedido subsidiário, por autor ou contra réu diverso do que demanda ou é demandado a título principal, no caso de dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida.

e, ainda, noutro âmbito:

art. 265.º, n.º 2 C.P.C.

o juiz providenciará, mesmo oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando estiver em causa alguma modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá-los.

Em síntese:

incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer. 27 Page 17

Insistindo no derrube, cum grano salis do princípio dispositivo, 28 surge o princípio da adequação formal.

Que primo conspectu pode merecer louvaminha, como inovação de grande estirpe, mas que olhada por outro ângulo infunde receios, prenúncios maus.

É: quando se reflicta no

«Artigo 265.º-A 29

Princípio da adequação formal

Quando a tramitação processual prevista na lei não se adequar às especificidades da causa, deve o juiz oficiosamente, ouvidas as partes, determinar a prática dos actos que melhor se ajustem ao fim do processo, bem como as necessárias adaptações.»

Se, por um lado, parece vir trazer ao processo a dinâmica, a celeridade que, inúmeras vezes, lhe faltava, doutro ângulo, constitui, sem dúvida, uma intromissão, que pode ser demasiada, do juiz 30 na iniciativa e vontade das partes.

E, nem se contraponha com a audição das partes que consta no texto legal. Ouvir as partes, não obsta a decisão de rumo diverso; aliás, não alinhando as partes pelo mesmo diapasão, sempre uma será contrariada.

Porventura, prevendo problemas no relatório do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12/12, fala-se sobre a intervenção do juiz, é certo, mas condicionando-a à obtenção do acordo das...

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