Inquérito civil prévio da acção civil pública contra bancoop

AutorMarco Antonio Zanellato
CargoProcurador de Justiça

Protocolado n.° 137.681/2006

Inquérito Civil n.° 14.161.446/06-1

Promotoria de Justiça do Consumidor

Representantes: Comissão de Representantes do Empreendimento

Residencial Edifício "Torres da Mooca" e outros

Representados: Diretoria e membros do Conselho Fiscal da Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo Ltda. BANCOOP

Ementa

Consumidor Cooperativa habitacional Existência de relação de consumo entre o Órgão de Administração (Diretoria ou Conselho de Administração) e os cooperados, de acordo com a jurisprudência predominante do Superior Tribunal de Justiça e dos tribunais locais, independentemente da caracterização, ou não, da sociedade como cooperativa No caso vertente, em razão de gestão fraudulenta e/ou temerária da cooperativa, em prejuízo de inúmeros cooperados, restou descaracterizada a sociedade como cooperativa Gestão fraudulenta e/ou temerária traduzida em uma série de irregularidades, em arrepio aos ditames da Lei n.° 5.764/1971 (Lei do Cooperativismo) e da Lei n.° 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor) Tais irregularidades, entre outras, consistiram: (i) na participação de dirigentes e conselheiros nos quadros sociais de várias empresas que prestaram serviços à cooperativa; (ii) na criação de Fundo de Direitos Creditórios FDIC, dando-se em garantia aos investidores os recebíveis da cooperativa, em afronta à Lei do Cooperativismo e sem o consentimento dos cooperados, fundo este que captou mais de R$ 40.000.000,00 para serem empregados na construção dos imóveis, sem que se tenha comprovado essa destinação; (iii) na ausência de regular (de acordo com a Lei do Cooperativismo e do Estatuto da Cooperativa) de todos os cooperados para as assembléias, de tal sorte que todas as decisões sempre foram tomadas com base em menos de 10% dos cooperados; (iv) na não-construção de imóveis em vários empreendimentos e paralisação das obras em outros; (v) na exigência do pagamento de diferenças, a título de reforço de caixa e apuração final dos empreendimentos, sem a devida demonstração de sua necessidade, de modo a elevar sobremaneira o preço final dos imóveis, tornando-os compatíveis ou superiores aos preços de mercado; (vi) na fusão das contas de todos os empreendimentos (cerca de cinqüenta) em uma só conta, de molde a dificultar ou inibir a prestação de contas dos recursos obtidos em cada um dos empreendimentos, decorrentes do recebimento das mensalidades pagas pelos cooperados; e (vii) repasse de unidades residenciais a construtoras, que não podiam associar-se à cooperativa, a título de pagamento de serviços por elas prestados à própria cooperativa Hipótese de cooperativa aparente ou de "fachada" Embora tenha sido constituída como cooperativa, de há muito apenas aparenta ser uma cooperativa, uma vez que, na realidade, vem atuando no mercado como uma empresa incorporadora ou vendedora de imóveis, desvirtuando, assim, o propósito de uma verdadeira cooperativa habitacional, que deve ser o de uma associação de pessoas que se organizam com o objetivo de se ajudarem mutuamente, com prestação de serviços aos seus associados-cooperados, suscetíveis de resultar na construção de imóveis a preços inferiores aos de mercado, de modo a atender às necessidades de todos quantos individualmente (ou seja, sem associar-se na forma de cooperativa) não podem realizar o objetivo de adquirir a casa própria Aplicação, na espécie, da teoria da aparência jurídica, tida pela doutrina e jurisprudência, nacionais e alienígenas, como um princípio que visa à proteção da confiança de terceiros de boa-fé (boa-fé subjetiva ou boa-fé crença), que acreditaram na aparência criada pelo comportamento de outrem No caso concreto, tal comportamento consistiu na criação, pelo corpo diretivo da cooperativa, da aparência de uma verdadeira cooperativa para as pessoas que nela ingressaram de boa-fé e foram, por isso, iludidas e prejudicadas Os dirigentes da cooperativa atuaram como se fossem fornecedores de produtos ou serviços, nos moldes do art. 3.° do CDC, promovendo, de forma disfarçada, a venda de unidades residenciais aos cooperados, ilaqueados em sua boa-fé, os quais, assim, devem ser tratados como consumidores, nos termos do art. 2.°, caput, do CDC Aplicabilidade, por decorrência lógica, das normas de proteção dos consumidores aos cooperados, previstas no CDC Incidência da doutrina ou teoria do "diálogo das fontes", que, in casu, se traduz na aplicação coordenada do Código Civil, da Lei do Cooperativismo e do Código de Defesa do Consumidor, numa relação harmônica de complementaridade e subsidiariedade Aplicação essa que favorece os cooperados (favor debilis), indiscutivelmente vulneráveis na relação estabelecida com o Órgão de Administração da cooperativa, de modo a justificar-se a aplicação das regras e dos princípios do CDC Rejeição da promoção de arquivamento do inquérito civil, para o fim de ajuizamento de ação civil pública em face da cooperativa e de seus dirigentes.

Voto

1. Trata-se de promoção de arquivamento de inquérito civil instaurado com base em representação formulada pela Comissão dos Representantes do Empreendimento Residencial Edifício "Torres da Mooca" contra a Diretoria e os membros do Conselho Fiscal da Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo Ltda. (BANCOOP), visando à promoção de ação civil pública em face destes últimos, pelo Ministério Público.

2. Segundo a autora da representação (fls. 04/53), a mencionada cooperativa foi criada para ser uma cooperativa habitacional, sem a intenção de obter lucro, "com a finalidade precípua de atender às necessidades de moradia de seus associados (inicialmente pessoas filiadas ao Sindicato dos Bancários)". Para assegurar o princípio do cooperativismo, previsto no artigo 174, § 2.°, da Constituição Federal, "estabeleceu que cada empreendimento habitacional corresponderia a uma Seção distinta, onde seriam inscritos os interessados, admitidos como associados, segundo critérios previstos no próprio Estatuto Social". Em obediência ao princípio da dupla qualidade, "o qual prevê que todo associado é simultaneamente sócio e usuário da organização, a Cooperativa Habitacional estatuiu que seria mantido em sua contabilidade registros independentes para cada Seção, de forma que os custos diretos, despesas indiretas e receitas pudessem ser atribuídas especificamente aos associados vinculados aos empreendimentos habitacionais respectivos". Para que nada faltasse e os prédios fossem bem construídos, o então presidente da Cooperativa, Luiz Eduardo Saeger Malheiro, e outros membros do Corpo Diretivo constituíram empresas para a realização de inúmeros negócios jurídicos, "formando um complexo grupo econômico". Assim, constituíram as empresas Germany Comercial e Empreiteira de Obras Ltda., Mirante Artefatos de Concreto Ltda. e Master Fish Psicultura e Lazer Ltda., com a participação do então presidente da Cooperativa, e outras empresas (Empreendimento Planejamento, Assessoria e Participações; Vídeo Temple Ltda. Me; Conservix Limpeza e Serviços Ltda., etc.), com a participação de membros do corpo diretivo e do Conselho Fiscal.

Relata uma série de irregularidades praticadas pelos dirigentes da cooperativa, que podem ser assim sintetizadas: (i) embora a maioria dos adquirentes das unidades residenciais tenha quitado os valores contratuais, as contas da seção "Torres da Mooca" ficaram "negativas", motivo pelo qual eles (os dirigentes da cooperativa) pretendem obter um expressivo aporte financeiro dos cooperados para concluir as obras do bloco "C"; (ii) os cooperados não têm como confiar nas afirmações dos dirigentes da cooperativa, por serem, concomitantemente, administradores, construtores e fiscalizadores do empreendimento, sendo certo que "as empresas do Grupo Econômico dos Dirigentes da Cooperativa foram co-responsáveis pela sangria dos recursos", em flagrante violação à Lei n.° 5.764/1971; (iii) a cooperativa juntamente com a Administradora de Fundos Planner Corretora de Valores (gestora) e o Banco Itaú S/A (custodiante) criou o Fundo de Direitos Creditórios FDIC BANCOOP I, com a finalidade de adquirir os contratos de financiamento imobiliário por ela celebrados. Assim, estipulou-se que a carteira do aludido fundo seria composta por direitos creditórios decorrentes da construção de empreendimentos imobiliários pela cooperativa e que os devedores dos créditos do fundo seriam necessariamente os associados da BANCOOP. Referido fundo poderia adquirir novos contratos designados pela cooperativa, tão-logo os financiamentos fossem sendo quitados, bem como recebíveis de crédito e outros títulos de renda fixa na carteira. Divulgou-se, por meio da Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA), que o citado fundo seria do tipo condomínio fechado, com prazo de três anos, oferecendo aos seus cotistas seniores um retorno equivalente ao rendimento do IGP-M/FGV, mais um spread ou sobretaxa de 12,5% ao ano. Afiançou-se que, caso houvesse descasamentos potenciais entre os ativos de crédito (contratos atualizados monetariamente pelo índice CUB/SINDUSCON, sem qualquer incidência de juros, durante a fase de obras) e o rendimento alvo das cotas do fundo (IGP-M/FGV mais uma sobretaxa de 12,5% ao ano), a cooperativa cobriria o investimento dos cotistas. Tal operação, no mercado financeiro, captou 43 milhões de reais. Esse fundo foi criado em afronta à Lei n.° 5.764/1971 e ao Estatuto da Cooperativa, pois estes proíbem esse tipo de operação financeira. Os cooperados do Edifício "Torres da Mooca", sem terem dado consentimento à realização da mencionada operação financeira na Bolsa de Valores de São Paulo, suportaram o pagamento de R$ 163.627,03, sendo R$ 140.723,41 em julho de 2005 e R$ 22.903,62 em agosto do mesmo ano, de modo a serem "vítimas de um grande engodo, engendrado pelos dirigentes da cooperativa"; (iv) a cooperativa não apresenta isenção política, conforme exige o artigo 4.°, inciso IX, da Lei das Cooperativas, em virtude de: ter sido fundada pelo então...

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