A "lealdade" no comércio ou as desventuras de uma iniciativa comunitária (análise crítica da directiva 2005/29/CE)

AutorJ. Pegado LIZ
CargoAdvogado

A "lealdade" no comércio ou as desventuras de uma iniciativa comunitária (análise crítica da directiva 2005/29/CE)1

1. Introdução: a defesa dos consumidores, o sentido de uma evolução
1.1. O 15 de março de 1962: a primeira afirmação política dos direitos dos consumidores

1.1.1. Se é certo que será sempre possível subir até ao direito romano na busca das primeiras normas ditadas por uma política de protecção dos consumidores, o facto é que é apenas nos anos 20 que, nos E.U.A., se encontram os primeiros sinais de uma tomada de consciência colectiva no sentido da necessidade de combater os efeitos do desequilíbrio fundamental que traduz a relação de consumo, entre um profissional economicamente dominante, bem informado e apetrechado para oferecer e promover a venda de bens e serviços, e um consumidor necessitado de tais bens, mal informado, desprotegido e facilmente manipulável pelas técnicas da publicidade e do "marketing".

1.2.1. Mas é verdadeiramente em 1962 que o Presidente Kennedy, numa célebre mensagem dirigida ao Congresso, proclamaria, pela primeira vez, uma espécie de Carta dos direitos dos consumidores, enunciando, como seus direitos fundamentais, o direito à segurança (protecção contra os produtos que podem causar dano à vida e à saúde), o direito à informação (protecção contra a publicidade enganosa ou falsa e a garantia de uma informação objectiva), o direito à livre escolha (garantia do acesso a uma variedade de bens e de serviços a preços concorrenciais e garantia de uma oferta suficiente e vantajosa em termos de qualidade e de preços) e, por fim, o direito a ser ouvido (por forma a que os interesses dos consumidores sejam tomados em consideração na elaboração das políticas governamentais e pelas autoridades administrativas encarregadas de as aplicar).

1.2. Brevíssima informação sobre as origens do consumerismo na europa

1.2.1. Na Europa, os movimentos dos consumidores começam mais tarde, nos anos 50 e claramente por influência do que se passava nos E.U.A..

1.2.1.1. Em Inglaterra, a "Consumers Association" aparece em 1957, à volta da revista "Which" que chega a atingir 3 milhões de leitores, voltada fundamentalmente para os ensaios comparativos.

Para além da "Consumers Association", instituição puramente privada e independente, foi fundado, em 1955, pela "Bristish Standard Institution", corporação de direito público que elabora as normas para os produtos britânicos e importados, o "Consumers Advisory Council".

1.2.1.2. Na Alemanha, a Federação das uniões dos consumidores data de 1953 e constitui a organização de cúpula de todos os grupos que se ocupam, de maneira muito diversa, das múltiplas questões do consumo.

Por sugestão desta Federação, em Outubro de 1962, o então chanceler Adenauer, em declarações no "Bundestag", lançou a ideia da criação de um instituto independente encarregado da realização de testes comparativos.

Em 1964 foi apresentado, perante a Dieta federal, o primeiro projecto de lei tendente a dar às organizações de consumidores o direito de acção judicial contra a publicidade enganosa.

1.2.1.3. Em França existe, desde os anos 50, a "Union Féderale de la Consommation" (UFC), que representa os consumidores a nível nacional e na qual estão filiados desde organizações privadas até serviços governamentais ou semi-oficiais, como o Instituto Nacional de Estatística. O seu objectivo principal é a informação e o aconselhamento dos consumidores, possuindo uma extensa rede de comités regionais. A União publicou várias revistas de que se destaca a revista ilustrada "Que Choisir?" e a brochura "Savoir acheter".

Paralelamente foi criada, em 1959, pelos sindicatos e pelas cooperativas, a "Organization génerale des consommateurs" e, a partir de 1962, foi instituído um "Comité National de la Consommation", com vista a assegurar um contacto permanente entre os poderes públicos e os representantes dos consumidores e com competência para se pronunciar sobre todos os projectos de lei relativos ao consumo.

1.2.1.4. Nos Países Nórdicos, foi na Dinamarca onde primeiro despontaram movimentos de protecção dos consumidores. O "Danske Forbrugerrad" (Conselho dinamarquês dos consumidores) foi fundado em 1947 por várias organizações feministas, como reacção contra a má qualidade dos produtos no pós-guerra e a necessidade de garantir o aprovisionamento.

Paralelamente, o "Statens Husholdningsrad" é um órgão governamental cuja actividade consiste essencialmente em ensaios comparativos publicados em "guias de compras" mensais.

Também na Suécia, a partir de 1956, foi criado o "Statens Konsument Rad" (Conselho Nacional do Consumo), com a finalidade de apoiar e de coordenar a colaboração entre todas as autoridades interessadas nos problemas do consumo (organizações e associações, institutos científicos, empresas privadas). Como organismo público, este Conselho elabora as directivas gerais para a informação e a formação dos consumidores.

Também em 1956 foi criado o "Statens Institut for Konsumentfragor" (Instituto nacional para os problemas do consumo), com o objectivo de melhorar e de garantir a qualidade dos produtos, alimentares e não alimentares.

Na Noruega, em 1953, foi criado o "Forbrukerradet" (Conselho dos Consumidores), instituição oficial, autónoma, encarregada da representação dos consumidores no plano da política económica e da informação e consulta dos consumidores, bem como da realização de inquéritos sobre a qualidade e os preços dos produtos. Para além disso, detém competência para a mediação de conflitos de consumo.

1.2.1.5. Na Itália, em 1955 foi criada, em Roma, a "Unione Nazionale Consumatori", que cedo instituiu uma série de comités provinciais. Desde 1960 publica a revista mensal "Comprare" com informação aos consumidores sobre bens e serviços.

Do lado do Estado, foi criado o "Instituto Qualità Itália" cuja tarefa principal é o controle da qualidade.

1.2.1.6. Na Bélgica a primeira Associação dos consumidores foi fundada em 1957. Também no mesmo ano, na Holanda foi criado o "Stichting Consumenten Contact Orgaan" (Fundação para defesa dos consumidores), directamente apoiada pelo Estado.

1.2.2. No plano internacional a necessidade sentida de coordenar a actividade de todas estas iniciativas expontâneas dos cidadãos, conduziu à criação, em 1960, do IOCU (International Office of Consumers Unions) com sede em Haia, que iniciou de imediato a publicação de um boletim bimensal para informação sobre as actividades das suas filiadas.

Inicialmente fundada por cinco associações de consumidores (dos E.U.A., do Reino Unido, da Austrália, da Bélgica e da Holanda), agrupa actualmente mais de 120 organizações de consumidores de cerca de 50 países, e passou a designar-se International Consumers (IC).

Por seu turno, na CEE e por sugestão da Comissão, foi instituído o BEUC (Bureau Européen des Unions des Consommateurs), com sede em Bruxelas, que agrupa uma generalidade de associações de consumidores europeias e que, para além da divulgação de testes comparativos ("Euro-test"), se ocupa da coordenação e da proposta de medidas legislativas a nível comunitário, funcionando como organismo de "lobying" junto das instâncias comunitárias.

Fundado em 1962, o BEUC dispõe, desde 1973 (data da adesão à CEE da Inglaterra, da Dinamarca e da Irlanda), de um Bureau permanente. Entre as várias publicações que edita, destaca-se o seu Boletim "Actualités/News", com periodicidade mensal, para além dos Relatórios Anuais de Actividade extremamente circunstanciados e dos Memoranda reivindicativos, normalmente apresentados a todas as presidências do Conselho.

Como organismo de "lobying" que essencialmente é, o BEUC permanece em contacto constante com os membros da Comissão do Ambiente, da Saúde Publica e da Protecção dos Consumidores do Parlamento Europeu onde são examinadas as iniciativas que a Comissão deverá tomar em matéria de direitos dos consumidores; por outro lado, actua directamente junto do Comité Económico e Social, designando muitas vezes peritos para assistir as Secções deste organismo e exercendo pressão sobre os governos nacionais a fim de que sejam nomeados representantes dos consumidores no seio deste Comité.

Por direito próprio, o BEUC tem assento permanente no Comité dos Consumidores junto da Comissão Europeia, para além das relações privilegiadas que mantém com as várias Direcções Gerais, e, em particular, com a DG SANCO.

1.2.3. Em Portugal o movimento consumerista nasce com a criação da DECO a 12 de Fevereiro de 1974 e praticamente até hoje confunde-se com a sua actividade. De natureza mais científica, destaca-se, também, a APDC, Associação Portuguesa de Defesa de Consumidor, com sede em...

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