O Modelo de Justiça Administrativa - Apresentação

AutorIsabel Celeste M. Fonseca
Páginas27-38

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0. Introdução

O modelo ordinário de justiça administrativa da actualidade não surge assim por mero acaso. Ele resulta do fenómeno da Europeização e tem sido talhado a nível europeu, sobretudo pelo Juiz Europeu (I). E é conformado pelo legislador constitucional, sendo produto de um diálogo juspublicista intergeracional (II). É, de qualquer modo, um modelo desenhado para realizar o direito fundamental dos particulares de acesso ao processo efectivo e temporalmente justo (III).

I O modelo de justiça administrativa: a conformação Europeia

Os modelos de justiça administrativa de matriz nacional caracterizam-se cada vez mais por consagraram cada vez menos traços próprios e originais. Assim é, dada a europeização do direito processual administrativo, especialmente no que concerne às formas de concretização do direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva.

Neste contexto, realça-se o Direito Comunitário e a jurisprudência do TJUE. Aliás, o TJ tem tido um papel determinante na afirmação de um direito à tutela jurisdicional plena e efectiva, incluindo o direito a obter a condenação da Administração na prestação de comportamentos e na adopção de conduta, incluindo ainda o direito a obter uma tutela jurisdicional de urgência, de mérito ou provisória. Primeiro, fê-lo no contexto da afirmação dos princípios do primado do direito europeu e da necessidade da aplicação efectiva e uniforme do direito europeu: O caso Factortame é um exemplo disso. Depois, tal direito surge no quadro da afirmação de um verdadeiro princípio constitucional europeu: o princípio da tutela jurisdicional efectiva dos direitos subjectivos atribuídos pelo direito europeu aos cidadãos europeus: os casos Atlanta, Zuckerfabrik e Krüger são disso exemplo.

O direito europeu de urgência de fonte legal merece também aqui ser lembrado. Assim, no contexto da realização do mercado comum europeu e no quadro da tutela das liberdades fundamentais de circulação de pessoas, bens, serviços e capitais, cumpre realçar o direito europeu da contratação pública a celebrar nos sectores clássicos e nos sectores especiais: respectivamente, as Directivas (recursos ou meios contenciosos) 89/665/CEE, doPage 28 Conselho, de 21 de Dezembro, e a 92/13/CEE, do Conselho, de 25 de Fevereiro; e a 2007/66/CE de 11 de Dezembro.

Mas, o direito europeu de urgência decorre da CEDH e do TEDH. E afirmação tem como base legal o artigo 6.º § 1 e o artigo 13.º da CEDH. Assim, os cidadãos europeus têm direito a processos justos ou equitativos e têm direito sobretudo a processos temporalmente justos, sendo que a razoabilidade da duração do processo deve medir-se em função da complexidade do processo e da urgência: caso dos processos de responsabilização dos serviços públicos de saúde franceses por dano decorrente de transfusões de sangue contaminado com o vírus da sida. A demora de um ano foi considerada excessiva, uma vez que algumas das vítimas faleceram no entretanto. Assim, os Estados podem ser responsabilizados por não proporcionarem recursos efectivos, inclusive recursos destinados a garantir o direito à emissão de decisão em prazo razoável: caso Kudla/2000.

O Comité de Ministros do Conselho da Europa adoptou uma resolução - CM/ResDH (2007) 108 - congratulando-se com a adopção de algumas medidas internas, tendo instigado o Estado Português a aperfeiçoar o Regime de Responsabilidade civil extracontratual do Estado pela violação do prazo razoável. E foi nesse sentido que andou o legislador ao adoptar em Dezembro de 2007 a nova lei sobre responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais entidades públicas, tendo vindo acolher a possibilidade de responsabilização do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, traduzíveis em danos emergentes do deficiente funcionamento do serviço de justiça, incluindo por violação do direito à emissão de sentença em prazo razoável.

A europeização também se desdobra nessa outra dimensão de convergência dos modelos nacionais. E essa aproximação tem acontecido sobremaneira no que respeita à disciplina que versa sobre as situações-de-urgência, após a introdução de reformas recentes. Assim aconteceu em Espanha, em 1998 (pela lei 29/1998, de 13 de Julho), em França e Itália em 2000, respectivamente pela Lei n.º 2000/597, de 30 de Junho, que veio introduzir significativas alterações ao CodeJA, e pela Lei n.º 205, de 21 de Julho de 2000, que alterou a LTAR). E tais reformas têm como linha de força a concretização de modelos abertos de tutela de urgência, incluindo para tutela de direitos fundamentais, a introdução de mecanismos diversos, cautelares e autónomos que têm como traço comum concretizarem a sumariedade processual e a transferência para o juiz de poderes de apreciação e de decisão de decretamento da tutela cautelar.

Por exemplo, em França, procedeu-se a uma nova sistematização dos processos de référé que atendem a situações de urgência e procedeu-se à introdução de novos référés, talPage 29 como o référé-suspension e o référé-liberté para tutela provisória das clássicas liberdades fundamentais de circulação, manifestação, reunião, expressão e de religião, a que têm acrescido outras novos liberdades-direitos, como o direito de asilo, de propriedade, direito ao trabalho, direito de auto determinação das pessoas colectivas locais. Em Espanha introduz-se, para além dos processos cautelares atípicos, o amparo ordinário, nos artigos 114.º ss. da Lei de Jurisdição Administrativa de 1998. Na Alemanha, a jurisprudência administrativa aplica directamente o artigo 19, parágrafo IV da GG - que consagra o direito de acesso à tutela jurisdicional efectiva - para proceder à antecipação das decisões de mérito para tutela de direitos fundamentais envolvidas em situação de urgência: veja-se os múltiplos casos de exercício do direito de manifestação. E, no que concerne à regra do efeito suspensivo que decorre da impugnação de actos administrativos, estando tal preceito e jurisprudência em rota de colisão com a jurisprudência comunitária, mormente quando tais decisões administrativas aplicam direito comunitário, há quem defenda a vantagem em entregar ao juiz esse poder de apreciação e decisão quanto à oportunidade do decretamento da suspensão da eficácia de actos.

II O modelo de justiça administrativa: a conformação constitucional

Na actualidade, a nível constitucional, o modelo nacional de justiça administrativa é desenhado como judicialista, e é, portanto, um modelo cujos mecanismos se efectivam em tribunais próprios para as questões emergentes das relações jurídicas administrativas - os tribunais administrativos. Assim é nos termos do artigo 212.º, n.º 3 CRP, sendo um modelo que visa assegurar o direito fundamental dos particulares de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva.

Assim, nos termos do artigo 212.º, n.º 3 CRP, os tribunais administrativos são previstos como os tribunais comuns para resolver os litígios emergentes das relações jurídico administrativas. E o artigo 1.º do ETAF concretiza a mesma ideia. O artigo 4.º, n.º 1, explicita-a didacticamente. E neste sentido, na senda da constitucionalização da jurisdição administrativa reforçada sobretudo em 1989, a jurisdição administrativa tem um âmbito próprio e natural e é delimitado positivamente.

Vejamos o outro aspecto. Falamos, pois, de um modelo que acolhe remédios ou meios de defesa jurisdicionais que devem concretizar a garantia de acesso aos tribunais e a protecção segundo um processo justo-equitativo (due process) - em algumas das suas várias dimensões: sobretudo nas de direito a uma decisão fundada no direito, direito a protecção eficaz e temporalmente adequada, direito à execução de sentenças - direito de acesso à justiça administrativa e direito a processos céleres e prioritários. Aliás, para tutela de direitosPage 30 liberdades e garantias pessoais, há-de existir um processo caracterizado pela celeridade e prioridade1.

1

Já verificámos que o processo efectivo e o processo justo têm uma matriz histórica e cultural de cunho europeísta2. Aliás, mais recentemente, o traço que dele mais se destaca é a vertente supranacional, sendo, portanto, resultado do diálogo estabelecido entre jurisprudência e a doutrina, no contexto europeu. Neste quadro, o processo justo é aquele que é «regulado pela lei», devendo desenrolar-se em tempo razoável, com «contraditoriedade e com plena igualdade das partes», sob a actuação imparcial do juiz, devendo concretizar, numa medida certa ou temperada, as garantias das partes e a eficácia jurisdicional.

Vejamos a nível interno que é que ele significa. No plano nacional, o que deve, pois, entender-se por direito ao processo efectivo e temporalmente justo deslinda-se sobretudo a partir da jurisprudência do TC que versa sobre o direito de acesso ao direito e aos tribunais, especialmente naquela que foi ditada a propósito de certas garantias processuais fundamentais...

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