Código modelo de processos coletivos para ibero-américa exposição de motivos

AutorRoberto Berizonce/Ada Pellegrini Grinover/Angel Landoni Sosa

O reconhecimento e a necessidade de tutela desses interesses puseram em relevo sua configuração política. Em conseqüência, a teoria das liberdades públicas forjou uma nova "geração" de direitos fundamentais. Aos direitos clássicos de primeira geração, representados pelas tradicionais liberdades negativas, próprias do Estado liberal, com o correspondente dever de abstenção por parte do Poder Público; aos direitos de segunda geração, de caráter econômico-social, compostos por liberdades positivas, com o correlato dever do Estado a um dare, facere ou praestare, a teoria constitucional acrescentou uma terceira geração de direitos fundamentais, representados pelos direitos de solidariedade, decorrentes dos referidos interesses sociais. E, à medida em que o direito constitucional dá a esses interesses a natureza jurídica de direitos, não há mais razão de ser para a clássica discussão em torno dessas situações de vantagem configurarem interesses ou direitos.

2 Nos sistemas do common law a tutela dos interesses ou direitos transindividuais é tradicional: o instituto das class actions do sistema norte-americano, baseado na equity e com antecedentes no Bill of Peace do século XVII, foi sendo ampliado de modo a adquirir aos poucos papel central do ordenamento. As Federal Rules of Civil Procedure de 1938 fixaram, na regra 23, as normas fundamentais retoras das class actions. As dificuldades práticas, quanto à configuração e requisitos de uma ou outra de suas categorias, com tratamento processual próprio, levaram o Advisory Committee on Civil Rules a modificar a disciplina da matéria na revisão feita pels Federal Rules de 1966, as quais estão sendo novamente trabalhadas para eventuais modificações.

3 Nos sistemas do civil law, coube ao Brasil a primazia de introduzir no ordenamento a tutela dos interesses difusos e coletivos, de natureza indivisível, antes de tudo pela reforma de 1977 da Lei da Ação Popular; depois, mediante lei específica de 1985 sobre a denominada "ação civil pública"; a seguir, em 1988, elevando a nível constitucional a proteção dos referidos interesses; e finalmente, em 1990, pelo Código de Defesa do Consumidor (cujas disposições processuais são aplicáveis à tutela de todo e qualquer interesse ou direito transindividual). Este Código foi além da dicotomia dos interesses difusos e coletivos, criando a categoria dos chamados interesses individuais homogêneos, que abriram caminho às ações reparatórias dos prejuízos individualmente sofridos (correspondendo, no sistema norte-americano, às class actions for damages).

O Código Modelo de Processo Civil para Ibero-América recepcionou a idéia brasileira da tutela jurisdicional dos interesses difusos, com algumas modificações em relação à legitimação (que inclui qualquer interessado) e ao controle sobre a representatividade adequada (que no Brasil não é expresso). Com relação à coisa julgada, o regime brasileiro do julgado erga omnes, salvo insuficiência de provas, foi igualmente adotado.

No Uruguai, o Código Geral de Processo de 1989 repetiu as regras do Código Modelo de Processo Civil.

Na Argentina, primeiro a jurisprudência e depois o Código de Código Civil e Comercial da Nação, de 1993, seguiram o Código Modelo Ibero-Américano, até que a Constituição de 1994 contemplou, no art. 43, os chamados "direitos de incidência coletiva", para cuja tutela prevê o "amparo" e a legitimação ampla para o exercício de sua defesa. Mas a doutrina preconiza a introdução, no ordenamento, de ações específicas, à semelhança das existentes no modelo brasileiro. A jurisprudência, mesmo sem textos legais, tem avançado com criatividade para assegurar a tutela concreta dos direitos e interesses coletivos.

Em 1995, Portugal deu um passo à frente, com a Lei da Ação Popular, da qual também se extrai a defesa dos direitos individuais homogêneos. Em 1996, Portugal também criou ações inibitórias para a defesa dos interesses dos consumidores. E, desde 1985 o sistema já conhecia ações relativas às cláusulas gerais, com legitimação conferida ao Ministério Público, e portanto diversa da prevista para a ação popular, que é limitada ao cidadão, às associações e fundações com personalidade jurídica e às autarquias locais.

A seguir, outros ordenamentos ibero-americanos introduziram, de alguma forma, a tutela dos interesses difusos e coletivos em seus sistemas. No Chile, foi ampliada a abrangência da ação popular, com regulamentação em várias leis especiais e no art. 2.333 do Código Civil. No Paraguai, a Constituição consagra o direito individual ou coletivo de reclamar da autoridade pública a defesa do ambiente, da saúde pública, do consumidor e outros que por sua natureza pertençam à coletividade, mas não contempla expressamente instrumentos processuais para esse fim. No Peru, há alguma legislação esparsa e específica para a tutela de certos direitos coletivos, no campo das organizações sindicais e das associações dos consumidores. Na Venezuela, a nova Constituição prevê a possibilidade de qualquer pessoa entrar em juízo para a tutela de seus direitos ou interesses, inclusive coletivos ou difusos, mas não há lei específica que regule a matéria. A jurisprudência venezuelana reconhece legitimação para os mesmos fins ao Ministério Público, com base na legitimação geral que lhe confere a Constituição. Na Colômbia, a Constituição de 1991, no art. 88, atribuiu nível constitucional às ações populares e de grupo e autorizou o legislador a definir os casos de responsabilidade objetiva pelo dano causado a interesses e direitos coletivos. A lei 472 de 1998, que entrou em vigor a 5 de agosto de 1999, regulamentou o referido art. 88 da Constituição, definindo o regime das açãos populares e de grupo. O art. 70 cria o Fundo para a Defesa dos Direitos e Interesses Coletivos e o art. 80 cria um registro público das ações populares e de grupo, a ser gerido pela Defensoria do Povo de forma centralizada. (Fonte: Ramiro Bejarano Guzmán, "Processos declarativos", ed. Temis, 2001, 159-219, especialmente 160-163). É importante ressaltar que a ação popular destina-se à tutela dos direitos difusos e as ações de grupo à defesa dos que o Código Modelo chama "direitos individuais homogêneos".

Na Espanha, a reforma processual civil de 2.000 contempla a defesa de interesses transindividuais mas, segundo parte da doutrina, de maneira incompleta e insuficiente.

4 Vê-se daí que a situação da defesa dos direitos e interesses transindividuais, em Ibero-América, é às vezes insuficiente e muito heterogênea. E também se percebe que diversos países ainda não têm legislação alguma, ou legislação abrangente sobre a matéria.

A idéia de um Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América surgiu em Roma, numa intervenção de Antonio Gidi, membro brasileiro do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, reunido em maio de 2.002, no VII Seminário Internacional co-organizado pelo "Centro di Studi Giuridici Latino Americani" da "Università degli Studi di Roma Tor Vergata", pelo "Istituto Italo-Latino Americano" e pela " Associazione di Studi Sociali Latino-Americani". E foi ainda em Roma que a Diretoria do Instituto Ibero-Americano amadureceu a idéia, incorporando-a com entusiasmo. E, em Assembléia, foi votada a proposta de se empreender um trabalho que levasse à elaboração de um Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América, nos moldes dos já editados Códigos Modelo de Processo Civil e de Processo Penal. Ou seja, de um Código que pudesse servir não só como repositório de princípios, mas também como modelo concreto para inspirar as reformas, de modo a tornar mais homogênea a defesa dos interesses e direitos transindividuais em países de cultura jurídica comum. O Código como sua própria denominação diz deve ser apenas um modelo, a ser adaptado às peculiaridades locais, que serão levadas em consideração na atividade legislativa de cada país; mas deve ser, ao mesmo tempo, um modelo plenamente operativo.

Incumbidos pela Presidência do Instituto de preparar uma proposta de Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América, Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe e Antonio Gidi apresentaram o resultado de seu trabalho nas Jornadas Ibero-Americanas de Direito Processual, de Montevidéu, em outubro de 2002, onde a Proposta foi transformada em Anteprojeto.

O Instituto Ibero-Americano de Direito Processual convocou então uma plêiade de professores ibero-americanos para manifestarem sua opinião sobre o Código, papel este coordenado por Antonio Gidi (Brasil) e Eduardo Ferrer MacGregor (México). Os trabalhos foram publicados pela Editorial Porrúa sob o título "A tutela dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos Rumo a um Código Modelo para Ibero-América" e apresentados no decorrer do XII Congresso Mundial de Direito Processual, realizado na Cidade do México, de 22 a 26 de setembro de 2003.

Com os aportes acima referidos, a Comissão Revisora, integrada por Ada Pellegrini Grinover, Aluisio G. de Castro Mendes, Anibal Quiroga León, Antonio Gidi, Enrique M. Falcón, José Luiz Vázquez Sotelo, Kazuo Watanabe, Ramiro Bejarano Guzmán, Roberto Berizonce e Sergio Artavia procedeu a aperfeiçoar o Anteprojeto, surgindo assim sua 2a Versão, que em sua redação definitiva foi revista pelo professor do Uruguai Angel Landoni Sosa. O Anteprojeto foi discutido em Roma, recebendo algumas sugestões de aperfeiçoamento. Estas foram acolhidas, tendo os membros da Comissão Revisora, por sua vez, apresentado outras.

Finalmente, votadas as novas propostas, o Anteprojeto converteu-se em Projeto, que foi aprovado pela Assembléia Geral do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, realizada em outubro de 2.004, durante as XIX Jornadas Ibero-Americanas de Direito Processual, em Caracas, transformando-se assim no Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América

5 O modelo ora apresentado inspira-se, em primeiro lugar, naquilo que já existe nos países da comunidade ibero-americana, complementando, aperfeiçoando e...

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