Jurisprudência: A relevância da qualificação jurídica

AutorLuís Poças
Páginas93-99

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As consequências práticas sobre a qualificação291 do seguro de capitalização como seguro de vida ou como contrato atípico sem a natureza de seguro não se prendem com o regime do próprio contrato - no que respeita aos direitos e obrigações recíprocos das partes tal como expressamente resultam das cláusulas contratuais gerais da modalidade - mas com a aplicabilidade ao contrato de um conjunto de normas legais que compõem o enquadramento jurídico do seguro de vida, nomeadamente no plano civil e fiscal. Desta forma, em caso de litígio, o papel da jurisprudência na qualificação do contrato é essencial e pode comportar consequências importantes292.

Em virtude de os seguros de capitalização não suscitarem frequentemente litígios entre o segurador e o tomador, o beneficiário ou terceiros293 são raros os casos em que o Page 94 tribunal se vê confrontado com a necessidade de interpretar294 e qualificar este tipo de contrato. Não obstante, nos poucos exemplos de jurisprudência sobre esta matéria, notamos frequentemente alguma falta de domínio e de sensibilidade para as questões jurídicas suscitadas pelo direito de seguros e, em particular, pelo tipo de contrato em questão. O qualificativo de “mera aplicação financeira” - conceito cuja natureza e características são excessivamente simplificadoras e obscuras - é solução normal para uma incapacidade de passar para além da aparência. Seguem-se alguns exemplos merecedores de análise.

O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/05/2004 (Processo n.º 3329/2004-6 - Gil Roque)295 assenta na seguinte matéria de facto: na sequência da morte do de cujus, três herdeiros requereram processo de inventário facultativo reclamando contra a relação de bens apresentada pela cabeça-de-casal, cônjuge sobreviva do inventariado (com quem fora casada no regime da separação de bens). Arguíram, nomeadamente, a sonegação do valor de 11.000.000$00 (€ 54.867,77), que o de cujus havia pago como prémio de um contrato denominado “Liquidez Rendimento Seguro - Seguro de Vida Individual” e que, por sua morte, havia sido liquidado pela seguradora à cônjuge sobreviva a título de beneficiária designada da apólice. Ponderados os factos e o direito, o tribunal de primeira instância ordenou que fosse relacionado «o prémio de seguro pago pelo inventariado de 10.999.675$00 [€ 54.866,15] a título de doação». Inconformada, a cabeça-de-casal recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, invocando, quanto à qualificação do contrato, que se tratava de um seguro de vida e que a quantia em causa lhe tinha sido paga como benefício em caso de morte. Por seu turno, os recorridos alegaram que o referido contrato era qualificável como mera aplicação de capital.

Identificando como questão crucial a de saber se o montante em causa havia sido pago à cabeça-de-casal como «produto do seguro de vida efectuado pelo inventariado em seu benefício», o tribunal passou a analisar o tipo de contrato em causa, deparando-se com algumas perplexidades: as que resultam precisamente das características dos seguros de capitalização, oportunamente analisadas. Desde logo, deteve-se na prestação do segurador em caso de morte da pessoa segura, que correctamente identifica como contra-seguro, entendendo esta figura, não como uma prestação a favor de terceiro (como efectivamente a Page 95 é e como claramente decorre da estipulação de um beneficiário em caso de morte da pessoa segura), mas como «o reembolso dos prémios pagos pelo ou ao tomador/segurado», acres- centando que o segurador «obriga-se a restituir a totalidade dos prémios pagos». Desta forma, a figura do contra-seguro foi interpretada como um regresso dos prémios, com ou sem capitalização, à esfera jurídico-patrimonial do de cujus. Por outro lado, o tribunal identificou a o carácter comutativo do contrato: «trata-se de um contrato de seguro especial, uma vez que o pressuposto do contrato de seguro comum, que é ser “aleatório”, característica que consiste em os seus efeitos dependerem da ocorrência de um facto futuro e incerto, não se verifica em pleno neste tipo de contratos». Para além disso, o tribunal deparou-se ainda com a possibilidade de resgate das provisões matemáticas da apólice296 e da consequente possibilidade de o tomador “reaver”, a todo o tempo, as quantias em causa. Assim, concluiu o acórdão que os prémios em causa «fazem parte do património do inventariado». Embora a fundamentação do tribunal tivesse seguido um percurso lógico que partiu do reconhecimento da natureza do contrato de seguro em causa, ela subverte o regime deste tipo de contrato. Na verdade, ignorando a estrutura de contrato a favor de terceiro mortis causa inerente à designação beneficiária, e abstraindo da relevância da relação de valuta neste contexto, o tribunal concluiu: «é, a nosso ver, cristalino que se trata de uma doação»297, embora a tenha considerado nula por força do regime da proibição das doações por morte (artigo 946.º do Código Civil) e da nulidade das doações entre cônjuges casados no regime da separação de bens298. Em conclusão, o tribunal confirmou a decisão recorrida299. Page 96

No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/04/2005 (Processo n.º 1851/2005-6 - Fátima Galante)300 os factos são muito semelhantes aos do acórdão do mesmo tribunal de 13/05/2004, acima comentado, quanto aos problemas suscitados. Neste caso, tratou-se de uma acção intentada pela cabeça-de-casal contra um segurador, invocando que o de cujus havia celebrado com este último, pelo prazo de 9 anos, um contrato de seguro denominado “Capital Rendimento” - que garantia, em caso de morte da pessoa segura, o pagamento aos beneficiários designados (no caso, os herdeiros) da quantia de 3.000.000$00 (€ 14.963,94) e, em caso de vida do...

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