Neoliberalismo. Justiça e governabilidade

AutorRogério Medeiros GARCIA DE LIMA
CargoDoutor em Direito Administrativo pela UFMG

O chamado Estado Liberal, paradigma constitucional surgido no século XVIII, teve como pedra angular o principio da legalidade (Paulo Lopo Saraiva, 1983:8-1 1). Era calcado na teoria dos três poderes de Montesquieu. Intentava coibir o arbítrio dos governantes e oferecer segurança jurídica aos governados. O Estado legalmente contido é denominado Estado de Direito.

Consolidada a Revolução Industrial, emergiram necessidades sociais expostas pelos sucessivos movimentos socialistas. Demonstravam não bastar ao ser humano o atributo da liberdade. É preciso conferir a ele condições sócio-econômicas dignificantes da pessoa humana.

Diante da crise econômica do primeiro pós-guerra, o Estado teve de assumir papel ativo. Premido pela sociedade, tornou-se agente econômico, instalou indústrias, ampliou serviços, gerou empregos e financiou diversas atividades. Intermediou a porfia entre poder econômico e miséria, assumindo a defesa dos trabalhadores, em face dos patrões, e dos consumidores, em face de empresários.

Desde as Constituições Mexicana, de 1917, e de Weimar, de 1919, os textos constitucionais incorporaram compromissos de desenvolvimento da sociedade e valorização dos indivíduos socialmente inferiorizados, O Estado abandonou o papel não intervencionista e assumiu postura de agente do desenvolvimento e da justiça social (Carlos Ari Sundfeld, 1997:50-54). E o denominado Estado Social.

Prosseguiu a evolução dos paradigmas até culminar no Estado Democrático de Direito. Superada a fase inicial, paulatinamente o Estado de Direito incorporou instrumentos democráticos e permitiu a participação do povo no exercício do poder. Manteve o projeto inicial de controlar o Estado. Dessarte, o Estado Democrático de Direito é aquele: a) criado e regulado por uma Constituição; b) onde os agentes públicos fundamentais são eleitos e renovados periodicamente pelo povo e respondem pelo cumprimento de seus deveres; c) onde o poder político é repartido entre o povo e órgãos estatais independentes e harmônicos, que se controlam uns aos outros; d) onde a lei, produzida pelo Legislativo, é necessariamente observada pelos demais Poderes; e e) onde os cidadãos, sendo titulares de direitos, inclusive políticos, podem opô-los ao próprio Estado.

Paralelamente a esses paradigmas de organização política do Estado, fala-se também nos direitos de primeira geração (individuais), direitos de segunda geração (coletivos e sociais) e direitos de terceira geração (difusos, compreendendo os direitos ambientais, do consumidor e congéneres).

O historiador britânico Eric Hobsbawm (1995) considerou breve o século XX. Começou somente em 1914, até quando foram mantidas as mesmas características histórico-políticas dominantes no século XIX. Terminou em 1989, com a queda do Muro de Berlim. A partir de então, aceleraram-se mudanças radicais e se constituiu novo estágio na História Contemporânea.

Fala-se em crise da pós-modernidade (Cláudia Lima Marques, 1999:91). Operam-se mudanças legislativas, políticas e sociais. Os europeus denominam esse momento de "queda, rompimento ou ruptura". É o fim de uma era e o inicio de algo novo, ainda não identificado: pós-modernidade. Entraram em crise os ideais da Era Moderna, concretizados na Revolução Francesa. Liberdade, igualdade e fraternidade não se realizaram para todos e nem são hoje considerados realmente realizáveis. Desconfia-se da força e suficiência do Direito para servir de paradigma à organização das sociedades democráticas. Viceja o capitalismo neoliberal, bastante agressivo e com perversos efeitos de exclusão social.

Nos anos 1980, o chamado Welfare State, que combinava democracia liberal na política com dingismo econômico estatal, cedeu espaço ao novo liberalismo. Foram questionadas as políticas de beneficio social até então praticadas. Estados Unidos e Inglaterra, sob os governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, respectivamente, lideraram a implantação de uma nova política econômica. Assentava-se precipuamente nos conceitos liberais: Estado "mínimo", desregulamentação do trabalho, privatizações, funcionamento do mercado, sem interferência estatal, e cortes nos benefícios sociais.

Norberto Bobbio, grande pensador contemporâneo, sintetizou (1995:87-89):

"Por neoliberalismo se entende hoje, principalmente, uma doutrina econômica conseqüente, da qual o liberalismo político é apenas um modo de realização, nem sempre necessário, ou, em outros termos, uma defesa intransigente da liberdade econômica, da qual a liberdade política é apenas um corolário. (...) Na formulação hoje mais corrente, o liberalismo é a doutrina do `Estado mínimo' (o minimal state dos anglo-saxães)".

Roberto Campos1 foi arauto da ressurreição, no Brasil, das vetustas idéias liberais:

"A esperança que nos resta é um choque de liberalismo, através de desregulamentação e de privatização. Governo pequeno, impostos baixos, liberdade empresarial, respeito aos direitos de propriedade, fidelidade aos contratos, abertura a capitais estrangeiros, prioridade para a educação básica eis as características do Estado desejável: o Estado jardineiro

Mudando a ideologia dominante, muda a forma de se conceber o Estado e a Administração Pública. Não se quer mais o Estado prestador de serviços, mas, segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro (1997:11-12):

"Quer-se o Estado que estimula, que ajuda, que subsidia a iniciativa privada; quer-se a democratização da Administração Pública pela participação dos cidadãos nos órgãos de deliberação e de consulta e pela colaboração entre público e privado na realização das atividades administrativas do Estado; quer-se a diminuição do tamanho do Estado para que a atuação do particular ganhe espaço; quer-se a parceria entre o público e o privado para substituir-se a Administração Pública dos atos unilaterais, a Administração Pública autoritária, verticalizada, hierarquizada".

Nos Estados Unidos, a nova ideologia consolidou-se. Curiosamente, na pátria do

New Deal, o conjunto de reformas econômicas e sociais implantadas pelo Presidente Franklin Delano Roosevelt, após a crise de 1929, abrangendo...

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