Normas de interpretação contratual no Brasil

AutorNewton de LUCCA
CargoMestre
I Considerações introdutórias. Conteúdo e limites do presente trabalho: a questão terminológica

O título do presente artigo poderia despertar no leitor, muito provavelmente, a idéia de que seria examinado, ainda que apenas em caráter meramente introdutório, o conceito do próprio contrato, de vez que é sobre esse instituto que incidirá o nosso exame das normas existentes de sua interpretação. E nada mais natural que assim seja1.

Como diz o Eminente Professor Ricardo Luis Lorenzetti, hoje Ministro da Suprema

Corte da Nação Argentina, após lembrar o mal-estar causado pela teoria contratual:

"Los manuales suelen comenzar mostrando su perplejidad frente a la diversidad de significados del vocablo, el amplio espectro de situaciones que abarca y la multiplicidad de cuerpos legales que resultan aplicables."2

Daí por que, tendo em vista os limites adrede estabelecidos para esta exposição, estaremos nos desviando, deliberadamente, de uma análise prévia seja sob a perspectiva diacrônica, seja sob a sincrônica3 das várias concepções de contrato existentes na literatura jurídica universal4, para partirmos da singela idéia (porém sedimentada, desde há muito) de que o instituto é um acordo de duas ou mais partes5 com o propósito de regular os seus direitos e obrigações6.

Outra investigação de ampla envergadura da qual, por força da mesma razão já apresentada, passar-se-á in albis diz respeito ao importantíssimo conceito de interpretação, que desafia a inteligência humana desde os primórdios da civilização. Como devem ser interpretadas as Sagradas Escrituras? Eis uma interrogação expectante que se pôs, efetivamente, desde os primeiros tempos...7

Assim, não obstante a relevância de investigar-se o próprio conceito de interpretação8 e a despeito da famosa lição de Emilio Betti, para quem a palavra interpretar merece a mais cuidadosa análise, pois ela se presta a uso muitas vezes defeituoso (é utilizada na linguagem corrente em vários sentidos, capazes de gerar confusões conceituais), apenas de passagem aludiremos a tão tormentosa questão. E, independentemente do vasto campo de indagações que tal matéria suscita, também aqui ficaremos com a síntese do grande autor italiano, segundo a qual o processo interpretativo responde ao problema epistemológico de entender9.

Isto não significa, é claro, que o nosso trabalho esteja simplesmente reduzido a entender o que dizem os artigos de lei relativos à interpretação dos contratos. Em Direito, por certo, isto não nos basta, e toda a obra de Betti nô-lo demonstra...10

Em grosseiro resumo de autor tão profundo poderíamos alinhavar, apenas, umas pálidas idéias. Citando alguns exemplos, o grande autor peninsular mostra que designar como interpretação "uma explicação subjetiva do mundo proposta por um pensador, filósofo ou poeta" constituiria uma impropriedade. Aludir-se à "interpretação da vontade", como recorrentemente se faz, apresenta caráter ambíguo. Na atividade cognoscitiva da interpretação, como se disse, reside o problema epistemológico de entender.

Utilizando-se de uma distinção corriqueira ao jurista entre "ação" e "evento", Betti caracteriza a interpretação como sendo "a ação cujo evento útil é entender". E prossegue esclarecendo que se cuida de uma atividade que exige a espontaneidade espiritual de quem é chamado a entender, sendo que tal exigência não pode ser efetivamente cumprida sem sua ativa colaboração. Trata-se, assim, de um processo cognoscitivo peculiar no qual atua, de um lado, o espírito vivente e pensante daquele que interpreta e, de outro, uma espiritualidade objetivada em forma representativa. Tais lados se conjugam, segundo a mediação daquela forma representativa, na qual a espiritualidade objetivada vem encontrar-se com o sujeito que interpreta como algo independente dele, com objetividade tal que poderia ser qualificada de irremovível. Conhecer, como fenômeno de interpretação, é reconhecer, é reconstruir o espírito que, mediante a forma de sua objetivação, fala ao espírito daquele que interpreta. Algo diferente, portanto, do "conhecer" de um fenômeno que ocorre no mundo físico.

Espera-se do intérprete uma objetividade de tal ordem que a sua reprodução daquilo que foi objeto da representação seja o mais fiel possível ao valor expressivo ou sintomático, mas essa exigência de objetividade só se perfaz pela própria subjetividade de quem interpreta. Há uma verdadeira antinomia, segundo o autor italiano: de um lado, a subjetividade, inseparável da espontaneidade de entender; de outro, a objetividade, por assim dizer, a autenticidade do sentido que se trata de encontrar. Poder-se-ia dizer, grosso modo, que Betti desenvolve a construção da sua teoria geral da interpretação a partir dessa antinomia, na qual está baseada toda a dialética do processo interpretativo11. A teoria da interpretação, para ele, não pode ser exclusivamente jurídica, embora ela tenha no Direito uma aplicação especial. Daí a sua formulação de uma teoria geral de interpretação válida para todas as ciências culturais, mencionando os mais variados tipos de interpretação e ordenando-os de conformidade com suas funções respectivas.

A primeira função existente em todo processo interpretativo é, para ele, a meramente cognoscitiva ou recognoscitiva. A segunda é a função reprodutiva ou representativa. Nesta o processo de entender é um "meio" para atingir um "fim" ulterior, qual seja, o de fazer entender a um grupo de destinatários. Trata-se de uma interpretação subjetiva e pessoal, já que aquele que interpreta entende e transmite aos outros uma obra tal qual ele a concebe. A terceira função é chamada de normativa, na qual também o entender serve a um fim ulterior, no caso, o de fornecer "la massima della decisione" ou, em geral, da ação com o propósito de assumir determinada posição na vida social12.

Abstemo-nos de reproduzir a percuciente e acurada análise por extrapolar os lindes da presente investigação , empreendida pelo grande autor italiano, a propósito da interpretação histórica e normativa do Direito, na qual ele examina, em profundidade, a interpretação da Ciência Jurídica, cotejando a interpretação histórica com a interpretação normativa ou diretiva da conduta feita pelo jurista.

Apenas para finalizar, cumpre pôr em realce a importantíssima função do intérprete para Emilio Betti. Ela não se esgota quando ele simplesmente empreende a reconstrução da idéia originária da fórmula legislativa o que, efetivamente, não está dispensado de fazer , mas deve necessariamente adaptá-la à realidade presente, infundindo a vida desta, transfundindo a norma em elemento da vida social presente a cujo serviço ela se encontra13.

Ficam assim apenas palidamente entrevistas as principais idéias de Emilio Betti a respeito da teoria geral da interpretação. Façamos, agora, breve alusão ao pensamento de alguns autores que se ocuparam do tema.

"Interpretar uma expressão de Direito" ensinou nosso grande jurista Carlos Maximiliano14, calcado em Enneccerus15 "não é simplesmente tornar claro o respectivo dizer, abstratamente falando; é, sobretudo, revelar o sentido apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta", acrescentando logo a seguir que: "Não se trata de uma arte para simples deleite intelectual, para o gozo das pesquisas e o passatempo de analisar, comparar e explicar os textos; assume, antes, as proporções de uma disciplina eminentemente prática, útil na atividade diária, auxiliar e guia dos realizadores esclarecidos, preocupados em promover o progresso, dentro da ordem; bem como dos que ventilam nos pretórios os casos controvertidos, e dos que decidem os litígios e restabelecem o Direito postergado."

Despicienda será por certo, igualmente, a tarefa de pôr em realce a importância da interpretação contratual. Sabe-se que, no acordo de vontades estabelecido entre as partes, pode haver inteira simetria entre o que desejaram, por ocasião da avença, e a posterior expectativa dos direitos e obrigações por elas assumidas. Em tal hipótese, não há necessidade da interpretação propriamente dita. O sentido e o alcance das cláusulas contratuais coincidem plenamente, quer no processo interno de formação do acordo de vontades, quer no processo ulterior de exteriorização dessas vontades.

Quando, porém, inexistir tal simetria, frustrando as expectativas das partes quanto ao sentido e ao alcance das cláusulas contratuais, torna-se absolutamente decisivo o processo da interpretação contratual a fim de que sejam afastadas as dúvidas, as omissões, as obscuridades ou as contradições existentes naquelas cláusulas.

Köhler, um dos principais representantes do chamado método histórico-evolutivo, ao combater o verbalismo exegético ensinou que:

"Interpretar é escolher, dentre as muitas significações que a palavra possa oferecer, a justa e a conveniente. Por isso mesmo, a lei admite mais de uma interpretação no decurso do tempo. Supor que há somente uma interpretação exata, desde que a lei é publicada até os seus últimos instantes, é desconhecer o fim da lei, que não é objeto de conhecimento, mas um instrumento para se alcançar os fins humanos, para fomentar a cultura, conter os elementos anti-sociais e desenvolver as energias da nação" 16.

A atividade do intérprete do contrato não pode ser inteiramente livre, pois existem comandos legais que indicam um caminho a ser percorrido por ele, seja na interpretação da própria lei, seja na do contrato. É certo que o grande jusfilósofo Luis Recaséns Siches, em obras de maior envergadura sobre a doutrina hermenêutica, explicou que "a função jurisdicional e o modo de exercê-la escapam a qualquer criação legislativa, não pertencem a ela, não podem ser colocados dentro...

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