Nulidade dos Actos

AutorHelder Martins Leitão
Cargo do AutorAdvogado
Páginas152-214

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Conceito e Alcance

Para o comum das gentes, nulidade é a qualidade do que é írrito ou nulo, de nenhum valor; falta de alguma condição essencial; ausência de talento; incapacidade; insignificância; ninharia.

E para os juristas?

Quando se atente nas inúmeras páginas que se têm escrito sobre a figura, decerto que os juristas a não equivalem a qualquer insignificância ou ninharia.

Veja-se o conceito que nos dá José Dias Ferreira:284

As nulidades reguladas no Código pois significam a desconformidade dos actos do processo com as formalidades ou solemnidades legaes, ou essa desconformidade se manifeste por omissão ou por comissão; e não se confundem com as excepções que, como remédios de direito, podem ser julgadas procedentes, ou improcedentes, independentemente de terem ou não sido processadas com as formalidades legaes

.

Por outro lado, Alberto dos Reis,285 não a definindo, percorre a mesma esteira:

Em regra, o juiz, quando verifique que se omitiu um acto prescrito na lei ou que se efectuou um acto sem as formalidades legais, deve determinar que se preencha a omissão ou que se pratique novamente o acto para se observarem as formalidades exigidas pela lei. Mas esta regra sofre um desvio: não pode ordenar a prática do acto, se já expirou o prazo em que devia ser praticado e tem responsabilidade da infracção cometida a pessoa a quem aproveitaria a renovação. Por outras palavras o acto deve renovar-se: 1.º se ainda não expirou o prazo para ser praticado; 2.º se, apesar de ter expirado o prazo, a renovação aproveita a quem não tem responsabilidade alguma na nulidade cometida

.

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A verdade é que nenhum dos apontados jurisconsultos nos transmite uma noção breve, sintética, da nulidade. De resto, nem mesmo a lei, mormente o Código Civil, adianta qualquer conceito, ficando-se apenas pelos efeitos.286

E, como o que não tem remédio, remediado está, vamos, então, para os efeitos:287

As nulidades operam ipso jure, tal significando a desnecessidade de interposição de acção e mesmo arguição na pendência da lide, quando aquelas ocorram. A declaração é sempre oficiosa por banda do tribunal.

O decurso do tempo não as estanca, elas que são invocáveis por qualquer pessoa interessada.288

Posta de parte a classificação das nulidades entre supríveis e insupríveis que, presentemente, nenhuma sofre o anátema da irremediabilidade, poderemos arregimentá-las em principais e secundárias.

Em princípio, todas são sanáveis, a menos que a lei declare, expressamente, que a inobservância da forma estabelecida importará nulidade ou possa a irregularidade cometida influir no exame ou decisão da causa.

As considerações que acabámos de dar à estampa, bem se justificam, por se pretender com as mesmas suprir, pelo menos doutrinariamente, as lacunas existentes no Código.

Com efeito, iniciando-se a matéria das nulidades dos actos no art. 193.º do C.P.C., foge-nos a razão do tratamento conferido, em primeira linha, à ineptidão.

Tanto mais quanto é certo que daquele normativo289 não resultam as características que vestem as nulidades tidas por principais ou secundárias. E, por outro lado, igualmente, se olvida a tramitação e atenção diversas conferidas pelo legislador.

Veja-se se não é assim:

Temos, sucessivamente, tratadas a ineptidão da petição inicial, a falta de citação, o erro na forma de processo e a falta de intervenção do Ministério Público como parte acessória.

O legislador serve como que um «cocktail», desprovido de excipiente, elemento de irmanação ou de conductibilidade.

Porventura, o legislador com a inserção no Código de Processo Civil do art. 201.º,290 pretende «emendar a mão», deixando antever a distinção entre os dois supra apontados tipos de nulidade, adiantando mesmo o indício de conceito do instituto, para depois concluir pela inexistência de nulidades insupríveis.

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A distinção entre nulidades principais e secundárias, tem reflexos no modo de arguição: aquelas, serão conhecidas ex officio pelo tribunal; estas, devem ser reclamadas pelos interessados.291

E, igualmente, no tempo em que as nulidades principais devem ser invocadas, pois, nestas, demonstra o legislador ter cuidado especial. Na verdade, ainda que o não tivesse, ficaria tal omissão sobrelevada, devido ao conhecimento oficioso dessas nulidades.

Explanando o que o Código diz a este respeito, temos que:

  1. falta de citação e falta de intervenção do Ministério Público – podem ser arguidas em qualquer altura do processo, enquanto não devam considerar-se sanadas;292

  2. ineptidão da petição inicial e erro na forma de processo – podem ser arguidas até à contestação ou neste articulado.293

Quanto às nulidades secundárias, limita-se o legislador a fazer uma remissão, em bloco, para o prazo geral consagrado no art. 205.º do C.P.C.: na falta de disposição especial, é de 10 dias o prazo para as partes arguirem as nulidades.294

Obviamente que nulidades principais ou secundárias, arguidas deste ou daquele modo, dentro de um curto espaço de tempo ou num mais lato, sempre precisam de ser conhecidas e julgadas.

Ora, o momento do conhecimento das nulidades difere, conforme se trate de principais ou secundárias. Das primeiras, conhece o tribunal, as mais das vezes, no despacho saneador295 ou até à sentença;296 das segundas, deve conhecer logo que delas se aperceba.297

Sabido que as nulidades secundárias não merecem por banda da lei qualquer tipo de discriminação, mesmo diríamos, de nominação, vocacionaremos, a partir de agora, a nossa atenção, para a análise, de per si, de cada uma das nulidades principais:

– ineptidão da petição inicial

– falta de citação

– erro na forma de processo

– falta de intervenção do Ministério Público como parte acessória.

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Ineptidão da Petição Inicial

É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.298

E logo se indaga: quando é inepta a petição inicial?

Ora, ocorre ineptidão da petição inicial nestes casos:

– Falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir;

– Pedido em contradição com a causa de pedir

e

– Cumulação de causas de pedir ou de pedidos substancialmente incompatíveis.

Percorremos, de imediato, cada um destes casos.

E, desde logo, para se bem poder falar do primeiro, é mister que tenhamos a noção de pedido e de causa de pedir.

Pedido é a enunciação objectiva do direito que se pretende fazer valer e da providência jurisdicional que para ela se solicita.299

Causa de pedir é o próprio facto jurídico genético do direito, ou seja, o acontecimento concreto, correspondente a qualquer fattispecie jurídica que a lei admita como criadora de direitos, abstracção feita da relação jurídica que lhe corresponda.300

Como o pedido e a causa de pedir se incluem na petição inicial convirá também dela falar.

Que assim se chama por, precisamente, começar (iniciar) a instância.

Serve, primacialmente, para aí o autor expôr os fundamentos e o objecto da sua pretensão.

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Por isso mesmo, sendo o mote e o motor da acção, é que não se concebe que se lhe ausente o pedido ou a causa deste e, muito menos, que entre aquele e esta não haja consensualidade, coordenação, sintonia como a que deve existir entre a causa e o efeito.

E é importante, mesmo imperioso que tal suceda.

Tanto que a lei adjectiva estipula sanção para o desvio à imposição.

E aí temos a entrada em pleno do disposto no art. 193.º do C.P.C.: a ineptidão do petitório e, sequente e consequentemente, a nulidade de todo o processo.

Sanção demasiado severa?

Sê-lo-ia se aplicável à peça inicial imperfeita, eivada de lapsos facilmente corrigíveis.

Mas não.

Nem toda a incorrecção, nem toda a imperfeição do requerimento inicial conduz à ineptidão.

O autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, socorreu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer sem dúvida qual o efeito jurídico que pretendia?

A petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta.301

Aliás, o n.º 3, do supra citado art. 193.º do C.P.C., ressalva que não se julgará procedente a arguição de ineptidão do petitório quando, ouvido o autor, se verificar que o réu em sua contestação interpretou convenientemente a petição inicial.302

Repare-se que nos debruçamos sobre a ininteligibilidade do pedido e não em sua falta, esquecendo o que nos propuzemos tratar?

Não tanto, apenas nem concebemos que alguém se apresente em juízo sem dizer o que, realmente, quer.303

Mas, para além do pedido claro, preciso, perfeito, importa ainda que a causa de pedir responda aos mesmos requisitos.

Já acima dissemos o que é a causa de pedir, pelo que estamos aptos a compreender quando é ininteligível, capaz de gerar a ineptidão do petitório e, sequentemente, a nulidade de todo o processo.

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Com Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora304 dir-se-á que a inteligibilidade da causa de pedir não se atinge com a indicação vaga ou genérica dos factos em que o autor fundamenta a sua pretensão (dizendo, por exemplo, na acção possessória de manutenção, que o réu tem praticado actos de perturbação do seu direito; na acção de divórcio, que o réu tem violado os seus deveres conjugais, sem mais precisão; na acção de reivindicação, não indicando todos os factos concretos que interessam à aquisição do domínio).

Aqui, no âmbito da causa de pedir, a par da imperceptibilidade, bem pode ocorrer, pura e simplesmente, a sua falta.

Por vezes torna-se difícil distinguir a deficiência que envolve ineptidão da que deve importar improcedência do pedido.

Há uma zona fronteiriça, cuja linha divisória nem sempre se descobre com precisão.

São os casos em que o autor, na petição, debita afirmações mais ou menos vagas e abstractas, que umas vezes descambam na ineptidão por omissão da causa de pedir...

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