O tipo legal de crime de burla do erro ocasionado não expressis verbis, mas, através de actos concludentes - 2007 -

AutorAntónio José Lourenço
CargoMestrando e Doutorando em Direito Penal pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa
1. Introdução

Longe do primeiro dia da Criação1, ainda hoje, em pleno século XXI, entre aquele que de todo teve acesso à cultura, o melhor dos tarimbeiros, e o eminente dos letrados, faz escola, pasme-se, a lógica das soluções fáceis, baratas, milagrosas, de culinária, mágicas.

Passe o exagero, a predita lógica constitui-se como um seguro de vida da incriminação doravante considerada: o tipo legal de crime de burla, prevenido no artigo 217.° do Código Penal Português, que dispõe no seu n.° 1:

Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

As vítimas do referido crime, mortais crédulos incrédulos, os mesmos, na "comum" das situações , deixam enredar-se por uma espécie de espectáculo, com, ou sem, requintes de mise-en-scène, dizedor ou mudo, mas, sempre (suficientemente) bem montado, e, assumem, na verdade, um inacreditável protagonismo no iter processual, de dignidade vinculada, que o crime em apreço pressupõe, constituindo-se, eles mesmos, verdadeiros artífices, protagonistas, da própria desgraça.

Vamos ver o tipo vertente; debruçando-nos, maxime, a final, na questão, sempre credora de actualidade, do erro não ocasionado expressis verbis, mas, através de actos concludentes.

2. Possibilidades de construção do tipo

Antes de entrarmos na análise do tipo objectivo do crime em apreço, e para o que colhe, façamos este sublinhado: em termos dogmáticos o perigo e o dano equivalem-se, importando perceber que quer o perigo quer o dano são formas de violação do bem jurídico. Acresce, os crimes de perigo representam, em termos de percepção do momento de tutela, uma clara "antecipação" na defesa do bem jurídico: dir-se-á, em termos prosaicos, que nos crimes de perigo o legislador não espera pela conduta lesiva danosa, bastando-se com a conduta lesiva perigosa, para proceder à tipificação.

Refira-se, também, em extrema síntese, que no âmbito da conduta, se usa distinguir entre tipos cuja consumação pressupõe a produção de um resultado (crimes materiais ou de resultado em sede de perigo, normalmente2, crimes de perigo concreto), e tipos em que para a consumação é suficiente a mera acção (crimes formais ou de mera actividade em sede de perigo, normalmente, crimes de perigo abstracto); outrossim, ainda a nível da conduta, a distinção, entre crimes de execução livre e de execução vinculada: nestes o iter criminis e por conseguinte o modo de execução vem descrito no tipo, enquanto naqueles tal não assume qualquer relevância.

Dentro ainda do que colhe, referência aos crimes de intenção ou de resultado parcial ou cortado, nos quais o tipo legal exige, para além do dolo do tipo, a intenção de produção de um resultado que todavia não faz parte do tipo legal falta de congruência ou descontinuidade entre os tipos subjectivo e objectivo3. Assim, p. ex., o artigo 217.° que vem de referir-se, requer, no âmbito do tipo subjectivo de ilícito, que o agente actue com intenção de obter (para si ou para outrem) um enriquecimento ilegítimo, porém, a consumação do crime não depende da concretização de tal enriquecimento, bastando para o efeito que, ao nível do tipo objectivo de ilícito, se observe o empobrecimento da vítima4.

3. O tipo objectivo de ilícito

Situamo-nos no crime de burla, artigo 217.° do Código Penal5.

Trata-se, do ponto de vista do bem jurídico, de um crime de dano, que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro (v. o n.° 1 do artigo 217.° vertente). Acresce que, no âmbito da conduta, a burla consubstancia um crime material ou de resultado, cuja consumação depende da verificação de um evento que se traduz na saída dos bens ou valores da esfera de disponibilidade fáctica do legítimo detentor dos mesmos.

A burla representa, outrossim, um crime de intenção ou de resultado parcial ou cortado, posto requerer, como supra referimos, no âmbito do tipo subjectivo de ilícito, que o agente actue com intenção de obter (para si ou para outrem) um enriquecimento ilegítimo, embora, a consumação do crime não dependa da concretização de tal enriquecimento, bastando para o efeito que, ao nível do tipo objectivo de ilícito, se observe o empobrecimento da vítima falta de congruência ou descontinuidade entre os tipos subjectivo e objectivo.

Por outro lado, a burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento processo causal tipicamente descrito: utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro, que por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.

Tratando-se de um crime material ou de resultado, a consumação da burla passa, salvo melhor opinião6, por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio), e, depois, entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial. Ao predito duplo nexo subjaz a teoria da adequação (artigo 10.°/1 do C.P.), que, desde logo impõe a consideração do caso concreto, maxime, das características do burlado (critério do homem médio temperada com a consideração das características individuais do burlado) a fragilidade intelectual, a inexperiência,... devendo afirmar-se, buscando conforto na lição de Fernanda Palma/Rui Pereira7, «o nexo de causalidade psíquica entre a actividade astuciosa e o erro, mesmo nas hipóteses em que o êxito da burla se deve à especial ingenuidade da vítima. Para além de serem esses casos em que a vítima mais carece de protecção, actividade astuciosa constituirá então não só uma conditio sine qua non, mas ainda causa adequada do erro ou engano».

Dispensamo-nos da análise sistemática dos elementos típicos do crime vertente vamos centrar-nos no n.° 1 do artigo 217.° quando assinala que o erro do sujeito passivo tem de ser provocado astuciosamente.

Cumpre saber o que seja uma acção astuciosa que induza alguém em erro ou engano e o leve a ser artífice da sua própria desgraça, rectius, o leve a praticar actos em seu próprio prejuízo (ou em prejuízo de outrem).

Vexata quaestio, relativamente à qual ainda não logrou formar-se uma opinião comum: para caracterizar a acção astuciosa bastará qualquer mentira, ou deve esta concretizar-se numa manobra fraudulenta ou mise-en-scène, garantindo-se, assim, o respeito...

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