Acórdão de 1 de Outubro de 2002 do Tribunal da Relação de Coimbra

AutorMário FROTA

- Acidente em auto-estrada - Acumulação de água na via - Culpa do concessionário - Presunção de culpa - Responsabilidade contratual

  1. Não sendo possível nem exigível à Brisa que proceda em todos os momentos a uma integral inspecção da auto-estrada, nem saber se na origem da acumulação de água na via esteve deficiente diligência da concessionária, não pode ser-lhe imputada culpa efectiva na eclosão de acidente provocado pela aglomeração da água.

  2. Mas verificada aquela anormalidade e existindo nexo de causalidade entre ela e o dano, consistindo no despiste do veículo, presume-se, nos termos do art.° 493.°, n.° 2 do CC, omissão culposa de concessionário do dever da vigilância da auto-estrada e de prevenção de prejuízos, incumbindo-lhe ilidir tal presunção, sob pena de responder por culpa presuntiva.

  3. A utilização da auto-estrada com portagem configura a celebração de um contrato de utilização, não fazendo sentido uma prestação de indemnização por recurso ao sucedâneo contrato com eficácia de protecção para terceiros.

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I Relatório
  1. João Gomes intentou contra Brisa - Auto-Estradas de Portugal, S.A. e Companhia de Seguros Fidelidade, S.A., no Tribunal Judicial da Comarca de Pombal, a presente acção sumária para efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, pedindo a condenação solidária das Rés a pagar-lhe a quantia global de Esc. 1.701.119$00, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal, a contar da citação.

    Para tanto, e em síntese, invocou o acidente de viação de que foi vítima na A-1, via da qual aquela V. R. é concessionária, com responsabilidade transferida para a 2ª Ré, e que ocorreu devido ao facto de na via em causa se ter acumulado água da chuva, que então caía moderada, formando uma poça ou lençol de água, o que motivou o despiste com danificação da viatura por si conduzida.

    Citadas, ambas as RR. deduziram contestação.

    A Ré Brisa alegou - também sinopticamente - que no local do despiste não existia qualquer lençol de água e que o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do A., que conduzia a velocidade desadequada às características do tempo que se fazia então sentir, e sendo certo que só pode ser responsabilizada na base das regras relativas à responsabilidade civil extracontratual, não existindo qualquer culpa da sua parte, terá a acção que improceder.

    A Ré Fidelidade, por seu turno, alegou igualmente que no local do acidente o piso se encontrava em perfeitas condições, não existindo, em concreto, qualquer lençol de água, tendo o acidente ocorrido por culpa do A. e apenas por virtude da velocidade imprimida ao seu veículo, em grandeza tal que proporcionou fenómeno de hidroplanagem e consequente despiste da viatura.

    Concluiu assim, também ela, pela improcedência da acção.

    Seguindo o processo a sua normal tramitação processual, veio a ter lugar a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida douta sentença julgando a acção improcedente e absolvendo ambas as Rés do pedido.

  2. Irresignado com o assim decidido, interpôs o A. o presente recurso de apelação, consignando, em remate das suas doutas alegações, as seguintes conclusões: ………

III Do direito
  1. O âmbito do recurso, como é sabido, é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, de harmonia com o estipulado nos art.°s 684.°, n.° 3 e 690.° n.° 1, do Cód. Proc. Civil, circunscrevendo-se às questões aí equacionadas.

    Assim, e tendo em conta as acima transcritas conclusões, cuidemos, de per si, de cada uma das questões em tal súmula suscitadas.

  2. Começa o Apelante por sustentar que, ao invés do decidido na douta sentença ora em crise, da matéria de facto provada resulta demonstrada a responsabilidade civil por factos ilícitos (extracontratual, portanto) da Ré Brisa, com base na sua culpa efectiva na produção do acidente que o sinistrou.

    E assim, porquanto - sempre segundo o mesmo Apelante -, resultou provado que o acidente dos autos não se deveu a culpa do condutor do veículo HI (o Apelante), mas tão só ao facto de no local do acidente se encontrar uma acumulação de água junto à berma direita (considerando o sentido de marcha daquele) e as rodas da frente do veículo, ao entraram em contacto com a referida água, terem perdido a aderência ao piso.

    Esta acumulação de água no pavimento da via, portanto, foi a única e exclusiva causa do acidente.

    Ora - continua -, por força do contrato de concessão pela dita Ré Brisa firmado (constante do anexo ao então vigorante DL n.° 315/91, de 20 de Agosto), incumbia à mesma manter as estradas objecto de concessão em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização.

    Assim, e apesar de ter também resultado provado que no local do acidente existiam fendas para escoamento da água e as bermas se encontravam desobstruídas, a existência de acumulação de água na via junto à berma direita implica que as referidas fendas não eram suficientes para o respectivo escoamento, pois, de contrário, tal acumulação não ocorreria.

    Portanto - conclui - no local do acidente a auto-estrada não se encontrava, como se impunha, em perfeitas condições de utilização - pois que senão nunca se acumularia água suficiente de molde a provocar o sinistro, - pelo que forçoso se torna concluir pela culpabilidade da dita Ré.

    Que dizer?

    Salvo o devido respeito, não podemos sufragar esta posição do Apelante.

    Como é sabido, a culpa traduz-se num juízo de reprovação ou censura do agente por, em face das circunstâncias concretas da situação não ter agido de modo diferente, consoante não se devia como podia - cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 9ª ed., Almedina, pp. 582 e ss..

    Portanto - e de conformidade com este mesmo Mestre (idem, pág. 583)- aferir da culpa de uma pessoa implica saber se, perante uma dada situação, a mesma podia e devia ter agido de modo diferente e em que grau o podia e devia ter feito.

    Assentando num nexo existente entre o facto e a vontade do agente, pode a culpa revestir duas formas distintas, o dolo e a negligência ou mera culpa, ao caso em apreço apenas a última - como é manifesto -, interessando.

    Apresentando-se esta mera culpa, outrossim, sob duas modalidades, a saber, consciente ou inconsciente, comum a ambas é - ainda segundo o mesmo emérito ensinamento (pág. 594) - a omissão de um dever de diligência, ou seja, "o dever de não confiar leviana ou precipitadamente na não verificação do facto ou o dever de o ter previsto e ter tomado as providências necessárias para o evitar."

    Mas, qual o padrão por que se mede esse grau de diligência exigível do agente?

    Uma vez mais o referido alto ensinamento contém a resposta, elucidando que entre a culpa em concreto (que apela à diligência que o agente costuma aplicar nos seus actos, de que ele se mostra habitualmente capaz) e a culpa em abstracto (que se reporta à diligência de um homem normal, medianamente sagaz, prudente e cuidadoso, vale dizer um "bonus pater familias"), a opção tem que recair sobre esta última, na linha do consagrado no nosso diploma civilístico fundamental, o Código Civil - ob. cit., pp. 594 e ss..

    Com efeito, nos exactos termos do art.° 487.°, n.° 2, desse Compêndio "A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso".

    Expostas estas considerações, feitas mister para bem se aquilatar do vertente "thema decidendum", cabe perguntar se, frente ao quadro factológico acima elencado, se antolha possível detectar essa omissão de diligência por parte da Ré Brisa, imprescindível para lhe assacar aquele juízo de censura - culpa -, que o ora Apelante sustenta ter, no caso em consideração, ocorrido.

    Como decorre do veredicto que antes antecipámos, a nossa resposta não pode deixar de se pautar pela negativa.

    É certo que, como o Apelante observa, estando a Brisa vinculada a manter a via em boas condições de utilização e segurança, tal não ocorria no local do sinistro, onde, sobre a respectiva berma direita, se verificava uma acumulação de água.

    E certo é, outrossim, que foi ao entrar em contacto com essa concentração de líquido que as rodas da frente do HI entraram em hidroplanagem, perdendo a aderência ao piso e determinando o descontrole e despiste do veículo.

    Todavia, provou-se que na ocasião caía chuva, embora não se saiba em que quantidade.

    Por outro lado, também se provou que no local do acidente existiam fendas para escoamento da água e as bermas se encontravam desobstruídas.

    E não se tendo provado ao invés do afirmado pelo A/Apelante - que o piso se encontrava irregular, diversamente também se provou - uma vez mais contra o afirmado pelo mesmo

    A.- que a dita acumulação de água não atingia expressão suficiente para constituir uma poça ou lençol de água.

    E ainda quanto a essa acumulação, também indemonstrado ficou - de novo contrariando a tese do A., - que fosse ocasionada por deficientes condições de drenagem da água.

    Quer dizer, naquilo...

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