O papel da autoridade de saúde na segurança alimentar

AutorLúcio Meneses de Almeida
CargoMédico especialista em Saúde Pública Administração Regional de Saúde do Centro, IP Coimbra (Portugal)
Introdução

A segurança alimentar é da maior transcendência nas sociedades contemporâneas. Se, por um lado, os alimentos são substâncias a que virtualmente todos os indivíduos estão expostos várias vezes ao longo do dia em resultado da necessidade vital que é a nutrição, por outro lado a sociedade de consumo percepciona os riscos de forma mais sensível do que no passado.

Não obstante os alimentos serem mais seguros na actualidade, a incidência das doenças veiculadas pelos alimentos (foodborne diseases) tem vindo a aumentar, em resultado de uma maior proporção de casos detectados pelos sistemas de vigilância existentes (maior sensibilidade dos sistemas de vigilância).

De acordo com a OMS, o risco cumulativo anual de doença veiculada pelos alimentos (“toxinfecção alimentar”) é de 33% - i.e., 1 em cada 3 habitantes das regiões mais desenvolvidas do Globo adoecerá em consequência da ingestão de água ou de alimentos contaminados química ou microbiologicamente.

Nos Estados Unidos da América são notificados anualmente aos CDC (Centers for Disease Control and Prevention) cerca de 500 surtos. Dentre aqueles com causa identificada (40% do total), a sua grande maioria (cerca de 75%) são de etiologia bacteriana e 20% de etiologia química.

Estima-se que neste país 76 milhões de pessoas sejam afectadas todos os anos por doenças veiculadas pelos alimentos, resultando na hospitalização de 325 000 indivíduos e na morte de 5 000.

As transformações sociais, verificadas a um nível global nas últimas décadas, implicam um maior impacte potencial decorrente do consumo de alimentos potencialmente contaminados (maior número de expostos ou potencialmente expostos), estando os surtos por exposição a fonte comum alimentar mais frequentemente associados a um padrão epidemiológico “difuso” – dispersão dos casos no espaço e no tempo (casos esporádicos), ao invés da concentração tipicamente observada nos surtos familiares e colectivos.

Tal decorre, nomeadamente, da existência de alimentos com prazos de validade de vários anos (caso dos congelados ou dos enlatados) permitindo o seu consumo em períodos muito distintos, tornando, assim, mais difícil a identificação dos surtos em virtude da não simultaneidade da exposição.

Dentre as transformações sociais observadas nos últimos decénios destacam-se a globalização do comércio alimentar (produção e distribuição), o processamento industrial dos alimentos e o aumento do consumo de alimentos e refeições em cantinas, restaurantes e estabelecimentos afins.

Os alimentos pré-confeccionados, não obstante prestarem um serviço ao consumidor, implicam uma maior exigência em termos de qualidade nutricional e segurança alimentar.

O envelhecimento da população – fenómeno demográfico de âmbito global - e o aumento do número de imunocomprometidos (em resultado de doenças como a SIDA, as doenças neoplásicas ou doenças do metabolismo, como a diabetes mellitus) traduzem-se por uma maior proporção de indivíduos particularmente susceptíveis às doenças veiculadas pelos alimentos ou água contaminados.

A presente comunicação tem como finalidade abordar o papel das autoridades de saúde no sistema de segurança alimentar.

Além das atribuições legais (genéricas) destas entidades e da caracterização da rede de serviços operativos de saúde pública onde se encontram sediadas, o Autor descreve o papel das autoridades de saúde na prevenção e vigilância das doenças de origem alimentar, bem como a sua intervenção no decurso de surtos.

Pela sua relevância em segurança alimentar, será abordado um novo conceito de vigilância em saúde pública, desenvolvido pelo Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (2006): a “informação epidemiológica” (epidemic intelligence).

Segurança e qualidade alimentar

O que é a segurança alimentar? De acordo com o Codex Alimentarius, a segurança alimentar visa garantir que os alimentos não representam perigo para o consumidor quando são preparados ou consumidos de acordo com o uso para o qual foram destinados. Desta forma, define-se em termos de finalidade ou desfecho pretendido.

A segurança alimentar (food safety) assenta na abordagem integrada da cadeia alimentar (da produção primária ao consumo final) e na rastreabilidade dos produtos alimentares (traceability). Do ponto de vista de processo de análise do risco, ambas as situações apresentam uma dimensão temporal longitudinal; no entanto, a abordagem integrada da cadeia alimentar é essencialmente prospectiva, enquanto que a rastreabilidade é retrospectiva.

A literatura anglo-saxónica distingue food safety de food security: enquanto que o primeiro termo corresponde à segurança alimentar propriamente dita, o segundo está relacionado com o aprovisionamento alimentar (reserva estratégica alimentar).

Este conceito (food security) foi da maior relevância, nos países mais desenvolvidos, até ao advento da agricultura intensiva. Esta permitiu, a par do comércio alimentar global, assegurar ao longo de todo o ano e independentemente de fenómenos meteorológicos adversos, o suprimento alimentar dos países.

Classicamente, a segurança alimentar é entendida como dizendo respeito a “riscos agudos”, associados ao consumo de água ou de alimentos contaminados física (objectos estranhos), química ou microbiologicamente. No entanto, a “transição epidemiológica” observada na primeira metade do século XX implicou um novo padrão de morbimortalidade: o das doenças crónicas ou de evolução prolongada associadas a estilos de vida, incluindo a alimentação.

A proporção de mortes atribuíveis à dieta (incluindo o consumo excessivo de álcool) nos países mais desenvolvidos é estimada em mais de 50%. No que diz respeito à mortalidade específica por neoplasias, estima-se que os erros alimentares sejam responsáveis por entre 10 a 70% destas doenças.

Nessa medida, além dos riscos agudos, os riscos a longo prazo (relacionados com a qualidade nutricional dos alimentos) são da maior relevância em Saúde Pública, traduzindo-se no conceito de qualidade alimentar (food quality).

Gestão do risco alimentar e comunicação do risco

A análise do risco (risk analysis) é um processo analítico que visa fornecer informação relativa a acontecimentos indesejáveis para o indivíduo ou para o ambiente. Inclui a avaliação do risco (risk assessment), a gestão do risco e a comunicação do risco.

A gestão do risco (risk management) consiste na selecção de respostas possíveis face a um risco previamente caracterizado/avaliação do risco. A finalidade primária da gestão do risco alimentar consiste em salvaguardar a saúde pública, controlando o risco alimentar mediante a identificação e implementação de medidas efectivas.

A análise do risco alimentar visa determinar se o consumo de alimentos e água contaminados acarreta perigos para a saúde humana, através da estimação do potencial de efeitos adversos (estimação do risco) decorrentes da exposição aos compostos químicos e agentes microbiológicos presentes nos alimentos.

Este processo aplica-se às seguintes situações: surto de doença associado a patogéneos conhecidos (eg. toxinfecção alimentar colectiva); alarme social (public concern) decorrente da ocorrência potencial de patogéneos; preocupação relativamente a patogéneos emergentes; necessidade de implementação ou avaliação de medidas de controlo; necessidade de desenho de um processo seguro (eg. sistema proactivo de segurança alimentar).

A avaliação do risco alimentar inclui duas vertentes: a avaliação do risco microbiológico (MRA – microbiological risk assessment) e a avaliação do risco químico (CRA – chemical risk assessment). A avaliação do risco microbiológico pressupõe a avaliação do grau de contaminação...

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