Pouca terra e muito atraso....

AutorPedro Domingues
CargoJurista da apDC

"O caminho de ferro não responde pelos danos causados aos passageiros resultantes de atrasos, supressão de comboios ou perdas de enlace".

No entendimento do referido tribunal o comando incito no normativo " ... vem, afinal, e mesmo independentemente da graduação da culpa do transportador, vedar totalmente que qualquer prejuízo advindo aos passageiros... por força daqueles eventos, possa ser objecto de ressarcimento pelo prestador de tal serviço".

Tal norma afrontava o estipulado no art.° 60 n.° 1 da Constituição da República Portuguesa na medida que impedia que o direito à reparação dos danos dos consumidores pudesse operar.

A este direito à reparação dos danos ficam adstritas quer as entidades privadas quer as entidades públicas.

Importa contudo perguntar quantos consumidores serão informados destas mesmas regras, visto os atrasos sucederem-se continuamente e não serem muitos aqueles que por tal facto evidenciam o seu descontentamento.

Saberão que podem fazê-lo?

Este mesmo entendimento não foi acolhido no que diz respeito às normas dos art.°s 78 n.° 1, 79 n.° 1, 80 n.° 1, 81 n.° 1 alíneas a) e b), 82 n.° s 1 e 2 e 83 n.° 1 do Regulamento do Serviço Público de Correios porquanto "tratando-se de um serviço público vocacionado a proporcionar a toda a comunidade prestações indispensáveis à sua vivência, sem que, em contrapartida, se lhe exija encargos acentuados, é justificada a adopção de medidas legislativas limitadoras dos montantes indemnizatórios que... não se apresentam como irrisórios ou irrazoáveis".

Paralelamente, e uma vez que o "... utente pode optar por utilizar correspondência com valor declarado (...)", a indemnização corresponderá sempre, nestes casos, ao valor declarado.

... E até que ponto, a natureza pública de um (mau) serviço justifica a penalização dos consumidores!

Segue a transcrição integral do referido arresto.

Acórdão n.° 650/2004 de 16 de Novembro de 2004 do Tribunal Constitucional

Processo n.° 448/99

1-O Provedor de Justiça veio solicitar a este Tribunal que o mesmo apreciasse e declarasse a inconstitucionalidade com força obrigatória geral-pois que entende que se verifica violação do n.° 1 do artigo 60.° da lei fundamental, quando articulado «com as normas constitucionais sobre o regime substantivo de restrições a direitos, liberdades e garantias do artigo 18.°, n.°s 2 e 3»-das seguintes normas:

A constante do n.° 1 do artigo 19.° da tarifa geral de transportes, aprovada pela Portaria n.° 403/75, de 30 de Junho, alterada pela Portaria n.° 1116/80, de 31 de Dezembro;

As constantes do n.° 1 do artigo 78.°, do n.° 1 do artigo 79.°, do n.° 1 do artigo 80.°, do n.° 1 do artigo 81.°, dos n.°s 1 e 2 do artigo 82.° e do n.° 1 do artigo 83.° (esta última na parte em que refere que a importância da indemnização não pode exceder o limite a que se refere o citado artigo 78.°), todos do Regulamento do Serviço Público de Correios, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 176/88, de 18 de Maio.

Em síntese, sustentou o requerente:

A norma do citado n.° 1 do artigo 19.° da tarifa geral de transportes, ao prescrever que o caminho de ferro não responde pelos danos causados aos passageiros resultantes de atrasos, supressão de comboios ou perdas de enlace, tem por efeito excluir a responsabilidade civil do caminho de ferro por qualquer lesão, patrimonial ou não patrimonial, que lhe seja, objectiva e subjectivamente, imputada, rompendo, assim, o equilíbrio entre dois sujeitos de uma relação jurídica que, não obstante a empresa transportadora possuir um substrato institucional público, deve qualificar-se como uma relação jurídica privada de consumo e que se há-de considerar sob a esfera de protecção do n.° 1 do artigo 60.° da Constituição;

O passageiro consumidor do serviço do caminho de ferro encontra-se numa típica situação contratual de adesão e, por isso, numa posição de franca debilidade contratual e, sendo o direito à reparação dos danos prescrito no n.° 1 do artigo 60.° da Constituição um direito com natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias para efeitos de beneficiar do regime destes últimos, a norma do n.° 1 do artigo 19.° da tarifa geral de transportes restringe de forma absoluta aquela norma constitucional e o regime de protecção que lhe é assegurado pelo n.° 1 do artigo 18.° da lei fundamental, não podendo a restrição à reparação dos danos, ditada por aquele n.° 1 do artigo 19.°, ser considerada legítima em face das exigências cumulativas que se consagram nos n.°s 2 e 3 do indicado artigo 18.°, já que se não vislumbra a salvaguarda de qualquer outro direito ou interesse constitucional com significado, sendo que, deste modo, se torna diminuída a extensão e conteúdo essencial do direito à reparação dos danos;

As normas do n.° 1 do artigo 78.°, do n.° 1 do artigo 79.°, do n.° 1 do artigo 80.°, do n.° 1 do artigo 81.°, dos n.°s 1 e 2 do artigo 82.° e do n.° 1 do artigo 83.°, todos do Regulamento do Serviço Público de Correios-ao disporem, respectivamente: que, no caso de perda, espoliação total ou avaria total do conteúdo de uma correspondência registada, a indemnização não pode exceder a quantia equivalente a 20 vezes a taxa de registo paga; que, no caso de perda, espoliação ou avaria de cartas com valor declarado, a indemnização é a correspondente ao valor real dessas perda, espoliação ou avaria, não podendo exceder o valor declarado; que, no caso de perda ou inutilização nos circuitos da empresa operadora do documento apresentado para reprodução, a indemnização é a correspondente ao valor real da perda ou valor do documento, não podendo exceder o limite estabelecido para a perda da correspondência registada; que, no caso de perda, espoliação ou avaria de enco-menda registada, a indemnização não pode exceder, consoante as situações, o valor declarado, para as encomendas com valor declarado, ou a importância correspondente ao produto da taxa de registo em vigor na data da aceitação pelo factor 20, 30 ou 40, para encomendas até 5 kg, até 10 kg ou de mais de 10 kg; que, no caso de perda, espoliação ou avaria de um objecto à cobrança, a indemnização é a correspondente à fixada para uma correspondência ou encomenda simplesmente registada ou com valor declarado, ou, sendo o objecto à cobrança entregue sem o pagamento da totalidade da quantia devida, a correspondente à importância não cobrada; que, no caso de perda de títulos à cobrança, a indemnização é a correspondente à importância do real prejuízo causado, não podendo exceder o limite estabelecido para as correspondências registadas-, vêm estabelecer uma limitação ao direito de ressarcimento integral dos danos que podem ser sofridos pelo utente, representando um injustificado benefício concedido pelo legislador ordinário aos Correios de Portugal, S. A., com o correlativo benefício negativo do consumidor que, se se servisse de uma outra empresa postal, teria, em casos similares, direito a um montante indemnizatório que seria alcançado com os meios próprios do regime da responsabilidade civil, designadamente o resultante dos preceitos do Código Civil.

Terminou a entidade requerente o seu pedido concluindo:

A) As relações contratuais entre os passageiros do caminho de ferro, transportados pelos Caminhos de Ferro Portugueses, E. P., são relações jurídicas de consumo para o efeito da protecção constitucional garantida no artigo 60.°, n.° 1, na parte em que esta norma consagra o direito à reparação de danos;

B) Esta norma possui natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, pelo que ex vi do artigo 17.° beneficia do regime destes;

C) O direito dos consumidores à reparação de danos vincula directamente todas as empresas públicas em sentido estrito e as sociedades de capitais públicos, como é o caso, respectivamente, dos Caminhos de Ferro Portugueses, E. P., e dos CTT-Correios de Portugal, S. A.;

D) Violam a norma contida no artigo 60.°, n.° 1, quando articulada com o disposto no artigo 18.°, n.° 1, da CRP, as normas impugnadas ao afastarem o dever de indemnizar, num caso totalmente e nos outros não permitindo o ressarcimento integral dos danos causados aos utentes;

E) Violam a norma contida no artigo 60.°, n.° 1, quando articulado com o disposto no artigo 18.°, n.° 2, da CRP, as normas impugnadas ao restringirem o direito à reparação sem fundamento em outro direito ou interesse constitucionalmente protegido;

F) Violam a norma contida no artigo 60.°, n.° 1, quando articulada com o disposto no artigo 18.°, n.° 3, as normas impugnadas, ao restringirem o dano indemnizável a jusante da fronteira do conteúdo essencial do direito à reparação, num caso afastando o dever de indemnizar consumidores por lesão típica de incumprimento ou defeituoso cumprimento do contrato de transporte ferroviário, no outro caso, por arredarem totalmente do domínio do dano ressarcível os lucros cessantes e por não permitirem mesmo, em alguns casos, o ressarcimento dos danos emergentes

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Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54.° e 55.°, n.° 3, da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, veio o Primeiro-Ministro apresentar «pronúncia» sobre o pedido, a qual rematou com as seguintes «conclusões»:

A) Não há inconstitucionalidade da norma constante do n.° 1 do artigo 19.° da tarifa geral de transportes, por violação do disposto no artigo 60.°, n.° 1, in fine, quando articulado com o preceituado no artigo 18.°, n.°s 2 e 3, ambos da Constituição da República.

A cláusula específica limitativa da responsabilidade contratual prevista na norma cuja constitucionalidade se impugna funda-se num interesse público de especial relevo que encontra suporte no disposto nos artigos 2.°, 9.°, alínea d), e 91.°, alíneas a), d) e i), da Constituição da República.

A cláusula específica limitativa da responsabilidade prevista na tarifa geral de transportes, relativa unicamente a atrasos, falta de correspondência e supressão de comboios, mostra-se constitucionalmente admissível, legítima e razoável face ao fim de interesse público relevante que visa satisfazer.

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