Preparação do julgamento

AutorHelder Martins Leitão
Cargo do AutorAdvogado
Páginas23-40

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Entremos, agora, no escritório do mandatário dos réus, o qual se encontra reunido com os seus constituintes, Fernando Oliveira Onofre e mulher.

A reunião visa, é bom de ver, a preparação da audiência de discussão e julgamento já designada.

O causídico leu, uma vez mais, aos clientes o petitório, explicou-lhes o conteúdo da contestação e, bem assim, a matéria de facto relevante para a decisão da causa, considerada controvertida, portanto, a provar em audiência.

Seja: as indagações a que iriam ser submetidas as testemunhas arroladas. Reunião esta nada «pêra doce», já que os clientes, leigos nestes escaninhos, estranharam da razão que determinados factos, insertos no contestatório, não fossem objecto de perguntas às testemunhas.

Aí o advogado explicou que o juiz, ao fixar a base instrutória, 24 seleccionou da matéria de facto vertida ao longo dos autos a relevante para a decisão da causa, expurgando a desnecessária, enquanto considerou outra já tida como certa.

Mais referiu o mesmo advogado, para que não restassem dúvidas no espírito dos clientes, que as partes podem reclamar contra a selecção da matéria de facto, inserida na base instrutória, com a seguinte fundamentação:

*omissão de factos alegados com interesse para a boa decisão da causa;

*inclusão de factos, indevidamente, considerados como controvertidos;

*obscuridade do despacho que selecciona a matéria de facto relevante.

Na sequência, foi pedida ao casal-réu a maior precisão possível, sobre o que cada uma das testemunhas arroladas sabia, de verdade, em relação a cada facto tido por controvertido.

E, para o efeito, o causídico foi lendo aos clientes os factos a provar e, simultaneamente, a identificação das testemunhas.

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Mais lhes disse que, por força da lei, cada facto só podia ser respondido, no máximo, por três testemunhas e que o número destas tinha o seu limite.

Sim, por imposição do C.P.C., assim o é:

O casal Onofre, «viu-se negro», para entender tais regras de jogo. Então, havia factos que não podiam ser questionados às testemunhas?! Estas não podiam pronunciar-se sobre tudo o que sabiam?! Competiu, então, ao advogado eleger de entre as testemunhas arroladas, as três que, provavelmente, melhor saberiam responder.

Trabalho exaustivo para o advogado como, aliás, para os clientes. Labor difícil e, por vezes, com diminutos resultados.

Como podem as partes asseverar, com a precisão que se exige, o que cada uma das testemunhas arroladas sabe sobre este ou aquele facto?

E quando os factos controvertidos e a provar são de calibre técnico elevado, o caso ultrapassa a dificuldade para roçar a impossibilidade.

A propósito, queira o leitor atentar no seguinte: Continua a não existir qualquer disposição legal impeditiva de contacto do advogado com as testemunhas que integram o rol apresentado.

Não obstante, instaurou-se a prática de não o fazer, verdade que quando se descubra, mínimo que seja, desvio a tamanha imposição, logo «cai o Carmo e a Trindade».

O advogado constituído pela parte contrária, aproveita algumas vezes, a audiência de discussão e julgamento, para malevolamente, indagar da testemunha sobre a fonte de conhecimento, assim insinuando que foi instrumentalizada pelo colega.

Chega-se ao exagero de o advogado evitar, no tribunal, aproximar-se da testemunha que, porventura, conhece, para evitar mal-entendidos!!

«Artigo 632.º Limite do número de testemunhas

1 - Os autores não podem oferecer mais de 20 testemunhas, para prova dos fundamentos da acção; igual limitação se aplica aos réus que apresentem a mesma contestação.

2 - No caso de reconvenção, cada uma das partes pode oferecer também até 20 testemunhas, para prova dela e da respectiva defesa.

3 - Consideram-se não escritos os nomes das testemunhas que no rol ultrapassem o número legal.»

«Artigo 633.º Número de testemunhas que podem ser inquiridas sobre cada facto

Sobre cada um dos factos que se propõe provar, não pode a parte produzir mais de cinco testemunhas, não se contando as que tenham declarado nada saber.»

«Artigo 789.º Limitação ao número de testemunhas 25

É reduzido a 10 o limite do número de testemunhas a que se refere o artigo 632.º e a 3 o limite fixado no artigo 633.º».

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O subscritor destas linhas assistiu um dia a uma cena ridícula, tocando as raias do surrealismo.

Certo advogado arrolou como testemunha um médico que era seu cunhado e que, aliás, antes de o ser tinha sido seu companheiro de infância e colega nos estudos secundários.

Com receio de pensarem que o depoimento do clínico se encontrava manipulado, na audiência de discussão e julgamento, bizarramente, começa a inquirição tratando o médico por V. Ex.ª.

É a hipocrisia que muitas vezes caracteriza as relações sociais e que só serve para enganar papalvos.

Ou se acredita na dignidade e honestidade dos membros de uma classe e tudo vai bem, ou se duvida e, neste caso, não será a forma de tratamento que vai modificar o cerne da questão.

Vive-se de aparências, de teatro, no mau sentido que esta palavra encerra. O que interessa é mostrar parecença e não a realidade das coisas e dos factos. E o mau é que a audiência de discussão e julgamento, infelizmente, tem muito de teatro, deveras se preocupando com o formalismo em câmbio da verdade, da pureza e da realidade.

Pensamos que esta «proibição» que se espalhou do contacto do advogado com as testemunhas é uma falsa questão, sem razão de existir.

Porventura, erigiu-se como defesa da honestidade da classe, para que dela não pensem que se aliena, ou mesmo se abandalha.

Todavia, somos a crer que à força de protecção, se desprotegeu a advocacia, apontando-a a dedo como sendo capaz de se aviltar, de se vender.

Repare-se só na diferença entre o tratamento do advogado e do juiz. Este, feito do mesmo barro daquele, é entendido como idóneo, protegendo-o a lei. Estamo-nos a lembrar de, por exemplo, um acordo feito em acta nos autos, que não precisa da assinatura das partes, já que é dado como certo e verdadeiro quando da acta conste a presença do magistrado. O que este diz, é irrefutável e não se acredita que volvidas as costas dos acordantes, manipule o transaccionado.

Ao invés, se o advogado contactar as testemunhas é entendido como denunciador de falcatrua, de embuste, de mentira.

A Ordem dos Advogados devia tomar posição sobre este aspecto, partindo da base de que os seus pares são pessoas sérias e, profissionalmente, honestas, sendo essa a regra geral. Por haver juízes desonestos, não se vai inferir que todos o sejam.

Com o intuito, queremos acreditar, de protecção, coloca o advogado, ante o cidadão, como personagem de dignidade dúbia, capaz de trocar as voltas a seu bel-prazer.

Se assim é, o sentido que se apreende da prática subscrita pela Ordem, 26 talvez não seja na realidade senão um sentido menor, que «protege», envolve e, apesar de tudo, transmite um outro sentido. Este é, simultaneamente, o sentido mais forte e o sentido que «está por baixo». É o que os gregos chamavam a «allegori» e a «hyponoia».

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Lute-se pelo afastamento desta verdadeira «capitis deminutio» do causídico. Se este pode manusear toda a outra prova apresentada, porque não tratar, directamente, com as testemunhas para distribuição por estas dos factos controvertidos e, afinal, desta forma facilitar os trabalhos da audiência de discussão e julgamento ou, se quisermos, o atingir da verdade.

As mais das vezes o cliente solicita ao seu mandatário para indicar, por exemplo, um perito, dada a dificuldade que tem em conhecer uma pessoa habilitada em determinada matéria. A seguir-se, logicamente, aquela absurda proibição, deveria também o advogado ser proibido de indicar o perito, já que com ele, sendo, quiçá, do seu conhecimento pessoal, poderia ter contactos tendentes a vocacioná-lo para colagem à sua tese.

Deixemos, contudo, estas divagações 27 e continuemos a acompanhar o exame e estudo que o advogado dos réus está fazendo dos autos com vista à preparação da audiência de discussão e julgamento.

Passada a surpresa pelo facto de o advogado ter dito que não contactaria, directamente, com as testemunhas, pela suspeita que tal poderia levantar, 28 o casal Onofre...

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