Do processo legal dos testes comparativos

AutorAda PELLEGRINI GRINOVER
CargoProfessora Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - Brasil
A consulta

Honram-me os ilustres advogados Drs. Cássia Bianca Lebrão Cavalari Ferreira e Paulo Nicolellis Jr.. encaminhando consulta, acompanhada de documentos, com pedido de parecer em nome de ABIA Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação.

Relata a Consulente que a Associação de Defesa do Consumidor PRO TESTE, organização não-governamental sediada no Rio de Janeiro, realizou em junho de 2006 "testes comparativos" com 30 marcas de molhos de tomate existentes no mercado, tendo efetuado, para tanto, a aquisição de amostras de cada uma das referidas marcas em supermercados, bem como submetido tais amostras a exames laboratoriais, sem que, por outro lado, os respectivos fabricantes das marcas de molho de tomate fossem previamente informados da realização dos aludidos "testes comparativos", das datas e locais em que as amostras seriam colhidas, dos nomes dos laboratórios aos quais tais amostras seriam encaminhadas, do número identificador dos lotes cujas amostras foram coletadas, da possibilidade ou não de a-companhamento por assistentes técnicos nomeados pelos fabricantes dos procedimentos de coleta e de análise das amostras coletadas ou de obtenção de amostras do mesmo lote para a realização paralela de contraprova e da possibilidade ou não de apresentação de defesa e de contraprova.

Tais circunstâncias, de acordo com a Consulente, estariam em desconformidade com a legislação específica que regula a matéria (art. 33 e seguintes do Decreto-Lei 986/69, art. 27 e seguintes da Lei 6.437/77 e art. 5.4 da Resolução RDC 12/2001 da ANVISA), que exigem, para a coleta de amostras de produtos alimentícios com a finalidade de inspeção: (i) a arrecadação de 3 amostras representativas de cada produto a ser analisado; (ii) a entrega de uma das amostras ao respectivo fabricante para viabilização de produção de futura contraprova; (iii) a lacração das amostras na presença do fabricante ou de quem o represente; (iv) a remessa de cópia do laudo técnico com os resultados da análise ao fabricante; e (v) a possibilidade expressa de apresentação de defesa e de recurso à autoridade administrativa, bem como de solicitação da realização de contraprova.

Além disso, segundo a Consulente, encerrados os referidos testes, os fabricantes também não foram cientificados dos resultados das análises e do inteiro teor dos laudos técnicos lavrados, tendo a PRO TESTE se limitado a encaminhar, em 29 de junho de 2006, correspondência na qual se transmitiu breve síntese do laudo laboratorial produzido para cada amostra analisada, concedendo-se naquela ocasião prazo de uma semana para eventual interesse dos fabricantes das marcas envolvidas em se pronunciar sobre os resultados informados.

Contudo, aduz a Consulente que o prazo concedido para manifestação restou não observado, uma vez que além de haver ignorado a circunstância de que a realização, pelos fabricantes, de eventual contraprova em laboratórios credenciados pela ANVISA deman-daria período de tempo de 25 a 30 dias a PRO TESTE: (i) em 28 de junho de 2006 aforou diversas ações judiciais em face de empresas que fabricam e comercializam os produtos submetidos ao "teste comparativo"; (ii) em 29 de julho de 2006 publicou o resultado dos testes em periódico mensal intitulado "PRO TESTE"; (iii) nas primeiras semanas de julho de 2006 veiculou notícias sobre os resultados dos testes pela imprensa e pela internet.

Dessa maneira, alega a Consulente que as empresas fabricantes das marcas submetidas aos "testes comparativos" promovidos pela PRO TESTE não tiveram a oportunidade de participar das análises, de se manifestar sobre os resultados apurados, de confirmar a autenticidade das amostras e dos procedimentos técnicos adequados na realização dos testes e nem mesmo de ter pleno conhecimento dos testes realizados para que se lhe possibilitasse contra prova, em contraditório posterior.

Sujeitaram-se elas imediatamente à inegável repercussão dos resultados na mídia, foram compelidas a aforar medidas judiciais contra a PRO TESTE com a finalidade de obstar à já iniciada divulgação dos testes e, recentemente, ainda foram notificadas pela ANVISA para prestar esclarecimentos relativos à qualidade do processo de fabricação de seus produtos e às medidas adotadas em relação às questões apontadas pela PRO TESTE nos testes por ela efetuados.

Assim sumariamente relatada a questão, a Consulente formula os quesitos que seguem, que versam sobre as questões processuais postas nos autos.

Quesitos

1 Qual a atribuição (competência legal) conferida às entidades privadas de defesa do consumidor, como é o caso da PRO TESTE Associação Brasileira de Defesa do Consumidor? Elas integram o Sistema de Defesa do Consumidor e se submetem às regras do Decreto-lei 986/69 e da Lei 6347/77?

2 É correto afirmar que os testes realizados pela PRO TESTE principalmente análises microbiológicas de alimentos por laboratórios que possam apontar eventual desconformidade dos produtos com a legislação ou com as normas da ANVISA - deverão obedecer ao devido processo legal, ao contraditório inclusive o contraditório técnico e à ampla defesa, notadamente em relação aos procedimentos estabelecidos pelo Decreto-Lei 986/69 e pelas normas-padrão da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT)?

3 Em caso de resposta afirmativa ao quesito anterior, é correto afirmar que os procedimentos de testes conduzidos sem a obediência ao devido processo legal e sem possibilitar o contraditório e a ampla defesa, bem como os resultados obtidos seriam técnica e juridicamente questionáveis, configurando resultados nulos e prova ilícita e inadmissível?

4 A divulgação pública de resultados de testes conduzidos em afronta aos princípios constitucionais acima mencionados, antes de que as empresas se manifestem e possam contrariar tais resultados, configura atitude temerária, negligente e imprudente da

Pro teste?

Bem examinada a questão, inclusive pelos documentos que a instruem, passo a proferir meu parecer.

Parecer
  1. Exercício do poder e garantia do contraditório.

Um primeiro tema a ser enfrentado para que se dê adequada resposta às indagações da Consulente diz com a relação que existe, de um lado, entre a garantia constitucional do contraditório que integra a cláusula do devido processo legal e o exercício do poder, em suas diferentes expressões e, portanto, não apenas estatais, de outro lado.

Consoante autorizadas palavras de Cândido Rangel Dinamarco, tomado o poder em sua acepção mais ampla e vaga, ele "é a capacidade de produzir os efeitos pretendidos (ou simplesmente de alterar a probabilidade de obter esses efeitos), seja sobre a matéria ou sobre as pessoas". A nação, vista como realidade social, disse aquele processualista, "dispõe de meios integrados para a consecução de seus objetivos, sintetizados no bem comum. Todas as instituições sociais (família, grupos religiosos, culturais ou recreativos) econô-micas (empresa, sindicatos) ou mesmo políticas despregadas da estrutura estatal (partidos políticos) constituem pólos de poder e, na sua esfera, reputam-se responsáveis pela promoção do bem comum, de tal maneira que "o poder nacional encontra-se `disseminado' por todas as moléculas da sociedade"1 (grifamos).

Ainda na lição de Dinamarco, "Mede-se o poder nacional pela expressão somada de todos esses aspectos setoriais, sabendo-se que existem muitas e variadas fontes de poder". A noção de poder pode ser traduzida na "capacidade de decidir imperativamente e impor decisões", na qual está presente uma "implícita alusão ao elemento sanção"2 (grifei). E é precisamente nesse contexto que se insere a garantia de partici-pação dos destinatários dos atos de poder, como elemento a lhes conferir legitimidade, mais do que simples legalidade.

Ainda nas palavras de Dinamarco, "Sabe-se que no Estado-de-direito tem-se por indispensável fator legitimante das decisões in fieri a participação dos seus futuros destinatários, a que se assegura a observância do procedimento adequado e capaz de oferecer-lhes reais oportunidades de influir efetivamente e de modo equilibrado no teor do ato imperativo que virá. Tal é o primeiro significado da exigência democrática do contraditório; e trata-se de postulado que invade todo e qualquer processo, por força de suprema garantia constitucional (não somente o de jurisdição)". A exigência do contraditório "constitui conseqüência de tratar-se de procedimentos celebrados em preparação a algum provimento, qualquer que seja a natureza deste; provimento é ato de poder, imperativo por natureza e destinação, donde a necessária legitimação mediante o procedimento participativo3" (grifei).

Como já afirmei em sede doutrinária, o contraditório se desdobra em dois momentos: a informação e a possibilidade de reação"4. Ainda anotei ser "Clássico, entre nós, o conceito de Joaquim Canuto Mendes de Almeida, no sentido de constituir o contraditório expressão da ciência bilateral dos atos e termos do processo, com a possibili-dade de contrariá-los", lembrando que, na Itália, La China também viu no contradi-tório, de um lado, "a necessária informação às partes e, de outro, a possível reação aos atos desfavoráveis. Informação necessária, reação possível"5 (grifei).

Segundo Nelson Nery Junior, "Por contraditório deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar-se conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhes sejam desfavoráveis"6 (grifei).

Nas palavras de José Carlos Barbosa Moreira, impõe-se que o contraditório opere "não apenas formalmente, mas substancialmente", isto é, que sejam levadas em conta as possibilidades que cada parte terá, in concreto, de exercer os direitos inerentes ao contraditório, e que ao juiz se impõe assegurar, na realização dos atos instrutórios, as condições mais favoráveis, em princípio, à participação eficaz...

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