O processo como meio de efetivação dos Direitos Fundamentais

AutorElpídio DONIZETTI
CargoJuiz Desembargador no Tribunal de Justiça de Minas Gerais
1. Introdução

Ao me debruçar sobre o panorama atual da ciência processual tarefa indispensável para desempenhar meu honroso papel na Comissão de Juristas encarregada de elaborar o novo Código de Processo Civil percebo que ganha força a linha de pensamento que se convencionou chamar de neoconstitucionalismo e seu corolário, o direito processual constitucional, desembocando nas correntes do neoprocessualismo (também chamado de formalismo-valorativo).

Pretendem superada a concepção instrumentalista do processo, bem informada pela teoria circular dos planos material e processual de Carnellutti, ao fundamento de que a ciência processual não pode se olvidar da força normativa da Constituição e da importância dos Direitos Fundamentais.

Contudo, aqueles que propugnam a cartilha do futuro se esquecem do valor do passado e, de afogadilho, terminam por violar a Constituição que vige no presente. Trata-se de uma contradição espetaculosa: defender a máxima efetividade do texto constitucional tornando-o inócuo e inaplicável.

Não proponho aqui uma teoria conspiratória própria dos anos da cortina de ferro. Mas não posso deixar de, nesse momento em que são dadas (ou apagadas) novas luzes ao regramento jurídico-processual, esboçar minha preocupação com o processo de transfiguração do que deveria ser a última trincheira na luta pela materialização do direito material a jurisdição em autêntico "balcão de direitos", enquanto os demais Poderes da República se desoneram mediante atos simbólicos.

Para esse desiderato, discorrerei brevemente sobre o panorama das discussões doutrinárias no âmbito do Direito Constitucional e Processual Civil, procurando enfocar, sempre que possível, as modificações propostas no anteprojeto do novo CPC. Por fim, serão expostas as conclusões práticas desses movimentos, notadamente no que tange ao papel reservado ainda que implicitamente ao Judiciário.

2. Direitos Fundamentais alcance e evolução

Inicialmente, há que se indagar a razão do adjetivo "fundamentais". Segundo Konrad Hesse, sob um ponto de vista material, os direitos fundamentais se destinam a criar e manter os pressupostos elementares da liberdade e dignidade humana. Já sob um ponto de vista formal, direito fundamental é aquilo que o direito positivo qualifica como tal (Konrad Hesse e Carl Schmitt).

Em razão dessa dispositividade formal, os direitos fundamentais variam conforme a ideologia, a forma de Estado e de Governo e os valores consagrados no texto constitucional de cada país1, revelando seu papel tradicional de garantir a liberdade estritamente individual face ao arbítrio estatal, limitando a atuação do poder público.

Contudo, sob o enfoque material, o conteúdo histórico e filosófico dos Direitos Fundamentais revela seu traço universalizante, consubstanciada na expressão "direitos do homem2", prerrogativas destinadas não a determinado grupo de pessoas, mas ao próprio gênero humano3.

Informados pelo enfoque material, os direitos fundamentais de primeira geração (na expressão de Bonavides) ou dimensão consagravam as prerrogativas das liberdades individuais da burguesia do século XVIII, chamados de direitos civis e políticos, titularizados pelos indivíduos e oponíveis sobretudo em face da atividade estatal. São exemplos dessa geração o respeito à liberdade e à propriedade privada.

Já os direitos fundamentais de segunda geração encontram-se ligados ao valor da igualdade material, propugnado pela luta da classe operária pelo reconhecimento dos direitos sociais, econômicos e culturais. Trata-se de direitos de titularidade coletiva. Em razão de preponderantemente exortarem o Estado à ação, ao contrário do que aconteceu com os direitos de primeira geração, os direitos fundamentais de segunda dimensão passaram por um ciclo de baixa normatividade, observando-se que quase todos os ordenamentos flertaram com a tese da eficácia programática ou da reserva do possível. O efeito prático das duas teses citadas foi exonerar, respectivamente, o Poder constituinte derivado (exercido de forma preponderante pelo Poder Legislativo) e o Poder Executivo do problema do déficit de eficácia.

A terceira geração dos direitos fundamentais foi informada pelo valor da solidariedade e compreende a defesa do meio ambiente, a autodeterminação dos povos, a proteção do consumidor, dentre outros.

Por fim, os direitos fundamentais de quarta geração, segundo Paulo Bonavides, podem ser associados às discussões que envolvem o pluralismo e a diversidade, de forma a concretizar os ditames do Estado social. Norberto Bobbio aponta também a relevância dos avanços no campo da engenharia genética e as conseqüências das "manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo"4.

Paulo Bonavides sustenta também a inclusão da paz como direito fundamental de quinta geração.

Encerrada a digressão acerca da evolução dos direitos fundamentais, cumpre diferenciá-los das garantias fundamentais, também objeto de positivação no art. 5° da Constituição. Direitos, como exposto, correspondem a bens e vantagens prescritos na norma, enquanto as garantias tratam dos instrumentos através dos quais se assegura o exercício dos direitos. Dentre esses instrumentos encontram-se as ações constitucionais, como o habeas corpus, habeas data e demais previstas na legislação infraconstitucional, mas diretamente ligadas às garantias previstas no texto constitucional.

3. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: breve escorço e repercussões no texto do anteprojeto do novo Código de Processo Civil

- Neopositivismo: a premissa necessária

A lei, e isso não mais se discute, perdeu seu posto de supremacia. Se, durante segunda geração dos direitos fundamentais, chegou-se a dizer que os dispositivos que previam os aludidos direitos consistiam em meras exortações ao legislador, para que desse corpo normativo às conquistas ali consagradas (mera eficácia programática), hoje o panorama doutrinário e jurisprudencial é praticamente oposto.

Ocorreu uma crise do fundamento da imperatividade da lei genérica e abstrata, uma vez que a igualdade formal criada em oposição aos privilégios da aristrocracia do antigo regime que animava a produção legislativa revelou-se insuficiente para a efetivação da própria liberdade que almejava proteger. A neutralidade legislativa (todos serão iguais perante a lei) e, consequentemente, da jurisdição, levou a um beco sem saída, porquanto era...

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