A acção processual civil no código do consumidor

AutorJosé Lebre de Freitas
CargoProfessor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa
1. Considerações gerais

O maior defeito do anteprojecto do Código do Consumidor é talvez a sua muito má sincronização com os códigos que lhe estão próximos. Quando seria de esperar que o Código do Consumidor se posicionasse no sistema jurídico português como uma lei especial, articulada enquanto tal com as leis gerais que são a sua referência, eis que, surpreendentemente, nos encontramos perante uma regulamentação pretensamente completa, aparentemente ignorante de outras, sobranceiramente auto-suficiente.

O Código do Consumidor assume-se, ao longo dos seus mais de 700 artigos, como codificação central do direito português, usurpando o lugar até agora desempenhado pelo Código Civil: cobrindo a relação de consumo uma área vastíssima do direito civil obrigacional, de fora dos novos regimes pouco mais fica do direito privado do que o direito do trabalho, as obrigações entre comerciantes, os direitos reais, a família e as sucessões. Seria, pois, de esperar que o anteprojecto, elaborado por uma vasta equipa de juristas ao longo de 10 anos (metade do tempo que levou a fazer o Código Civil), se apresentasse com estrutura coerente e regulação cuidadosa. Em vez disso, porém, pesem embora as suas várias boas soluções, as redundâncias são cons-tantes e as contradições frequentes, o que potencia os defeitos oriundos da má articulação com as outras leis, que ora restringe, ora distorce, ora reproduz sob roupagem diferente, sem quase nunca o confessar. Basta olhar para um capítulo como o das garantias da compra e venda ou o da acção popular ou para uma norma como a dos pactos de competência para ver como o anteprojecto se dá mal com a legislação que lhe subjaz e se poder lamentar que a opção portuguesa não seja, a exemplo da alemã, a de inserir no Código Civil (e no Código de Processo Civil) as especialidades exigidas pela relação de consumo.

As observações que se seguem cingem-se às disposições reguladoras do processo civil de consumo. Abstraem das disposições sobre a insolvência, a mediação e a arbitragem, bem como das que regulam os direitos substantivos do consumidor. Centram-se, pois, no capítulo das disposições processuais cíveis e, dentro deste, nas disposições sobre a acção singular (arts. 534 a 549 1) e nas que regulam a acção popular (arts. 550 a 580). No que a estas se refere, desde já se estranha a originalidade de delas destacar as relativas à acção inibitória, em secção paralela à que trata da "acção popular", como se a acção inibitória fosse mais do que uma modalidade de acção popular.

Começo com o regime da competência e as normas que impõem uma via extrajudicial prévia à propositura da acção. Seguidamente, dentro da acção singular, trato sucessivamente dos articulados, da fase da condensação, da prova, da audiência final e dos recursos. No que respeita à acção popular, abordo, após algumas definições, o tratamento da legitimidade activa, da indemnização, da sanção pecuniária compulsória, do caso julgado e das custas.

2. A competência

A determinação da competência territorial para a acção singular movida pelo consumidor contra o profissional pode não obedecer às regras gerais do Código de Processo Civil: de acordo com o art. 536-1, o autor tem a alternativa de escolher entre o tribunal determinado por essas regras e o do seu domicílio. Sendo a acção movida contra o consumidor, as regras gerais são sempre afastadas: a competência do tribunal é determinada exclusivamente pelo domicílio do consumidor, sendo a violação desta regra de conhecimento oficioso (n.° 3).

Estas regras vão mais longe, na protecção do consumidor, do que o Regulamento (CE) n.° 44/2001, do Conselho, de 22.11.2000, que, para além dos casos de venda a prestações de bens móveis corpóreos e de empréstimo a prestações ou outras operações de crédito relacionadas com o financiamento da compra de tais bens, condiciona regra paralelas àquelas (escolha do consumidor entre os tribunais do Estado-membro em cujo território estiver domiciliado o comerciante ou profissional e o do lugar do seu domicílio; acção contra o consumidor em tribunal do Estado- -membro do seu domicílio) aos casos em que a relação de consumo se estabeleça com pessoa que tenha actividade comercial ou profissional no Estado-membro do domicílio do consumidor ou a ele dirija a sua actividade (arts. 15-1 e 16, n.°s 1 e 2, do Regulamento): a competência internacional do tribunal do domicílio do consumidor nunca é afastada quando na conclusão do contrato se haja utilizado serviços da "sociedade de informação" 2 (art. 547).

Inútil é a norma do art. 536-2, que estende a competência do tribunal ao julgamento do pedido reconvencional. Na verdade, nada se acrescenta ao art. 98-1 CPC, não fazendo qualquer sentido a reprodução da norma no Código do Consumidor.

Igualmente inúteis são as normas do art. 538, n.°s 2, 3 e 4, que nada acrescentam ao disposto no art. 100 CPC sobre os requisitos dos pactos de competência. Quanto ao n.° 1 desse artigo, não contém tão-pouco qualquer especialidade relativamente à acção movida contra o consumidor, visto que a inalterabilidade, por convenção, da regra de competência resulta já do disposto sobre o seu conhecimento oficioso (art. 536-3), tida em conta a regra do art. 100-1 CPC (articulação entre inadmissibilidade do pacto de competência e cognoscibilidade oficiosa da incompetência territorial). O conteúdo útil do artigo fica assim reduzido à estatuição da inadmissibilidade do afastamento das regras gerais sobre competência territorial nas acções movidas pelo consumidor fora do caso em que à competência alternativa do art. 536-1 se adicione terceira possibilidade de escolha.

O art. 562 contém a regra da competência territorial para a acção inibitória, cuja finalidade é a proibição, correcção ou cessação de comportamentos susceptíveis de lesar os direitos dos consumidores, nos casos indicados nas 13 alíneas do art. 558: a acção há-de ser movida no tribunal da comarca onde se localize o centro da actividade principal do demandado ou, não se situando ele em território nacional, naquele em que se localize o seu domicílio ou sede (art. 562). Tal como no Código da Insolvência (art. 3-1), e paralelamente ao que estabelece o art. 33-1 CC em sede de direito internacional privado, a sede estatutária constitui mera presunção de que a pessoa colectiva tem nela a sede principal e efectiva da sua administração.

Quanto à competência em razão da matéria, há que ter presente o disposto no art. 12 da Lei da Acção Popular: a acção procedimental administrativa é o meio a utilizar contra o acto ilegal da Administração, ainda que com fim de mera prevenção; fora dessas situações, o tribunal judicial é o competente para a acção popular, em exercício da competência residual que lhe é atribuída pelo art. 18-1 LOFTJ.

3. Via extrajudicial prévia

O art. 535 impõe o recurso ao procedimento de resolução extrajudicial de conflitos de consumo eventualmente instituído, nos termos dos arts. 706 a 708 (serviço de mediação, comissão de resolução de conflitos, provedor de cliente legalmente registado), previamente à propositura da acção singular. A acção, a instruir com certidão comprovativa de que esse...

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