A proposta de directiva "direitos dos consumidores". O caso particular das cláusulas abusivas

AutorJorge Pegado Liz
CargoAdvogado - Conselheiro no CESE - Presidente do Observatório do Mercado Único (OMU)
Páginas59-99

Ao meu querido amigo Prof. Mário FROTA, exemplo de uma vida dedicada à causa dos consumidores como preito de estima pessoal e de consideração pelo seu labor intelectual e contributo científico na área do direito do consumo.

1. Introdução Razão de ordem

1.1. Um dos objectivos1 da recente Proposta da Comissão sobre os "Direitos dos Consumidores"2, é a revogação da Directiva 93/13/CEE de 5 de Abril de 1993 e a sua substituição por um novo regime, constante fundamentalmente dos artigos 30.° a 39.° da Proposta.

O Parecer que o CESE adoptou sobre esta proposta3 considerou que esta matéria não devia ser objecto da anunciada nova directiva e, nessa medida, não se pronunciou em detalhe sobre esta parte da proposta.

Não é, contudo, certo que este entendimento venha a ser partilhado pelo Parlamento Europeu ou pelo Conselho e a Comissão já anunciou que não iria alterar a sua proposta nesse sentido.

Parece pois oportuno analisar os termos da alteração sugerida pela Comissão, quer nos seus aspectos jurídicos quer nas suas consequências políticas.

2. Antecedentes

2.1. É mister recordar que o tratamento comunitário das cláusulas contratuais gerais não é original e foi relativamente tardio se considerarmos o desenvolvimento que já havia tido na doutrina e até em diversos ordenamentos jurídicos nacionais, para não mencionar até a Resolução percursora do Conselho da Europa de Novembro de 19764, quando, no ano de 1984, a Comissão apresentou a sua primeira Comunicação sobre o assunto5.

No entanto a proposta final de directiva só foi apresentada em 1990 para ser adoptada apenas a 5 de Abril de 1993.

Isto espelha bem a dificuldade e o melindre de uma iniciativa legislativa comunitária que, pela primeira vez mexe no cerne do direito civil dos estados-membros e relativamente à qual eram divergentes as perspectivas dos sistemas jurídicos já em vigor nesses mesmos estados.

2.2. Com efeito, se a doutrina há muito se havia debruçado sobre a questão das cláusulas contratuais gerais, nomeadamente a propósito do desenvolvimento que se havia verificado, a partir dos anos 50, dos chamados "contratos de adesão", como os baptizou o grande jurisconsulto francês SALEILLES, em 19016, de que as apólices de seguro eram o paradigma7, e das concepções então nascentes relativas ao "direito justo", ao "equilíbrio contratual" e à protecção da "parte fraca", foi em especial na década de 70 que, primeiro na Alemanha8 e depois em vários outros países europeus, os ordenamentos jurídicos positivos consagraram disposições legais sobre as "cláusulas abusivas"9.

Em Portugal, o diploma que regula pela primeira vez esta matéria data de 198510 e foi precedido e seguido de importante produção doutrinária11, que antecedeu, de muitos anos, a primeira jurisprudência neste domínio.

E essa doutrina, europeia e nacional, primou pelo afeiçoar de conceitos e pelo precisar de interesses12, que, mais tarde, a jurisprudência, nos diversos países, iria aplicando aos casos concretos, formando um sólido corpo de decisões, donde era possível extrair uma orientação bem definida e estruturada.

Foi com este acervo que a Comissão se teve de defrontar quando decidiu avançar com a sua proposta a nível comunitário nos anos 90.

2.3. Não se estranhará que o Parlamento Europeu tenha sido particularmente crítico em relação à proposta da Comissão13, feita de compromissos e ambiguidades, indispensáveis para granjear a então necessária unanimidade14, que o Reino Unido tentou até ao último momento impedir, manifestando-se ferozmente quanto à iniciativa, que ia ao arrepio da sua lei nacional sobre os "unfair contract terms"15.

Também o Comité Económico e Social, congratulando-se embora com a iniciativa da Comissão como forma de "restabelecer o equilíbrio nos contratos celebrados pelos consumidores", não deixou, desde logo, para além de várias observações na especialidade, de chamar a atenção para a "inconveniência de aproximar o direito dos contratos enquanto tal" e para o "crescente risco de incerteza jurídica tanto para os consumidores como para os fornecedores, dado o papel essencial dos tribunais em matéria contratual" os quais, "mesmo baseando-se num instrumento legislativo harmonizado interpretarão de forma diferente disposições idênticas, em função da evolução do direito dos contratos e dos consumidores no respectivo Estado-membro e, de um modo geral, em função da cultura e tradição jurídicas"16.

E também não surpreenderá o facto de a sua transposição se ter arrastado por vários anos17 e de ter sido objecto mesmo de vários processos movidos pela Comissão, alguns dos quais chegaram até ao Tribunal de Justiça, por transposição tardia, incompleta ou incorrecta18.

2.4. É que, um pouco por toda a parte, e em particular nos países cujos ordenamentos jurídicos já consagravam sistemas por vezes bem mais avançados e tecnicamente mais perfeitos do que o constante da directiva, houve a noção da sua inutilidade ou mesmo do prejuízo da introdução de um instituto jurídico desfasado das realidades nacionais a que os sistemas existentes respondiam melhor do que o novo regime comunitário19.

No entanto, na medida em que o dispositivo comunitário regia exclusivamente para os "contratos celebrados com os consumidores", podendo assim considerar-se "lei especial" e principalmente porque consagrava o princípio da harmonização mínima20, a directiva acabou por ser transposta e passou a fazer parte do acervo comunitário em matéria de direito comunitário do consumo.

3. Breve súmula do regime da Directiva 93/13/cee
3.1. Finalidade

3.1.1. A directiva 93/13/CE é um exemplo de legislação simples e sintética que, em 11 artigos, define, de forma escorreita, um regime jurídico comunitário para uma das áreas mais complexas do direito dos contratos.

O seu objectivo é, desde logo, claramente fixado no seu artigo 1.° - a aproximação das disposições legislativas regulamentares e administrativas dos estados-membros relativas as cláusulas abusivas em contratos celebrados entre profissionais e consumidores.

Objectivo que a directiva enquadra na necessidade de garantir a progressiva realização do mercado interno, nas "divergências marcantes" das legislações respectivas dos Estados-membros e no seu desconhecimento pelos consumidores que os dissuade de efectuar transacções directas noutro Estado que não seja o da sua nacionalidade e nas "distorções de concorrência" entre os profissionais aquando da comercialização noutros Estados-membros.

A Comissão teve correctamente a percepção de que "a utilização de cláusulas que desequilibrem significativamente as relações contratuais entre as partes prejudica não só os interesses da parte que sofre com a utilização destas cláusulas, mas ainda a ordem jurídica e económica. Com efeito, as cláusulas contratuais gerais são vocacionadas para substituir as soluções jurídicas estabelecidas pelo legislador, substituindo, ao mesmo tempo, os padrões de justiça em vigor na comunidade por soluções procuradas de forma unilateral com o propósito de maximizar os interesses particulares de uma das partes." 21.

3.2. Campo de aplicação

O campo de aplicação da directiva é definido por uma disposição positiva e três disposições negativas.

De um lado, ela aplica-se apenas às cláusulas constantes de contratos celebrados entre profissionais e consumidores22, sendo que o "consumidor" é definido, de forma restrita, como "pessoa singular" que actue com fins que não pertençam ao âmbito da sua actividade profissional23 e o "profissional" é a outra parte que actua "no âmbito da sua actividade profissional, pública ou privada"24.

Por outro lado, ela não se aplica

- a cláusulas que tenham sido objecto de negociação individual (art. 3.° n.° 1) - sendo importante esclarecer aqui que não se trata, de um lado, do contrato no seu conjunto, que pode ser objecto de negociação, mas apenas das suas cláusulas, nem, de outro lado, exclusivamente de contratos de adesão, podendo ser aplicada a contratos feitos para um único consumidor, desde que as cláusulas não tenham sido efectivamente negociadas25, sendo certo que é ao profissional que incumbe a prova de que qualquer cláusula normalizada tenha sido negociada individualmente (art. 3.° n.° 2 III);

- a cláusulas decorrentes de disposições legislativas ou regulamentares imperativas dos Estados-membros ou de disposições ou princípios previstos em convenções internacionais de que os Estados-membros ou a Comunidade sejam parte (art. 1.° n.°2)26;

- a cláusulas que respeitem à definição do preço ou ao objecto principal do contrato, desde que redigidas de maneira clara (art. 4.° n.° 2)27.

3.3. Princípios fundamentais

3.3.1. Vários princípios fundamentais presidiram à elaboração desta directiva, destacando-se, desde logo, o já referido da harmonização mínima (artigo 8.°), com isso significando que os estados-membros podiam não só manter as disposições nacionais mais protectoras dos consumidores, com igualmente adoptar medidas mais rigorosas, desde que compatíveis com o Tratado e, designadamente, com os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade28.

3.3.2. Outro princípio fundamental é o do equilíbrio contratual que a directiva se propõe restabelecer num domínio em que o consumidor é reconhecidamente uma parte fraca, que não actua em pé de igualdade...

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