Do regime jurídico do crédito ao consumidor na União Europeia e seus refl exos em Portugal: a inversão do paradigma

AutorMário Frota
CargoDirector do Centro de Estudos de Direito do Consumo. Fundador e Primeiro Presidente da AIDC - Associação Internacional de Direito do Consumo
Páginas9-48
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RPDC , Março de 2011, n.º 65
RPDC
Revista Portuguesa
de Direito do Consumo
DO REGIME JURÍDICO DO CRÉDITO AO
CONSUMIDOR NA UNIÃO EUROPEIA E
SEUS REFLEXOS EM PORTUGAL:
A INVERSÃO DO PARADIGMA1
I. Do Crédito Selvagem ao Crédito Responsável:
o saudável retorno à máxima de sabor africano:
só se empresta um cabrito a quem tem um boi!
Pela Directiva 2008/48/CE, de 23 de Abril de 2008, do Parlamento Europeu e do
Conselho, que disciplina os contratos de crédito ao consumidor, ter-se-á operado a in-
1 O artigo original que ora se dá à estampa é-o em homenagem a um Homem que serviu denoda-
damente o Direito em múltiplos domínios e tem inequivocamente um lugar na galeria dos que no
Brasil escavaram os caboucos e sedimentaram os alicerces do Direito do Consumidor.
A José Geraldo de Brito Filomeno, a quem nos unem indestrutíveis laços de amizade, singela ho-
menagem de quem nestoutra riba do Atlântico procura simplesmente seguir, na humildade com que
o faz, o seu contagiante exemplo numa entrega sem par à Causa da Cidadania.
DOUTRINA
Mário FROTA
Director do Centro de Estudos de Direito do
Consumo
Fundador e Primeiro Presidente da AIDC –
Associação Internacional de Direito do
Consumo
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versão do que poderia considerar-se o paradigma vigente: o da celebração temerária,
irresponsável de contratos por iniciativa dos dadores de crédito – de instituições de cré-
dito como de sociedades f‌i nanceiras.
De harmonia com as directrizes nela plasmadas, incumbe aos Estados-membros adop-
tar medidas tendentes a incentivar práticas responsáveis em todas as fases da relação de
crédito, tendo em conta as especif‌i cidades do mercado de crédito. Práticas responsáveis
que se dirigem tanto a dadores como a consumidores de crédito, no quadro do regime
aplicável.
De banda dos consumidores tais medidas incluirão, por hipótese, a informação e a
educação para os serviços f‌i nanceiros, nomeadamente advertências no tocante aos riscos
que advêm do incumprimento das obrigações a que os consumidores se adscrevem e do
sobre-endividamento que sobe em espiral nas distintas praças de crédito, um pouco por
toda a parte.
De banda dos dadores de crédito, em um mercado em expansão, é especialmente im-
portante que as instituições de crédito e as sociedades f‌i nanceiras não se permitam con-
ceder empréstimos de modo irresponsável ou não o façam sem se munirem previamente
de garantias acerca da solvabilidade dos consumidores que se habilitem à sua concessão.
Tem-se como imperioso que os Estados-membros, através das autoridades para o efei-
to criadas, efectuem de modo ef‌i ciente e tempestivo a necessária supervisão para evitar
eventuais defecções, aparelhando o arsenal punitivo com o f‌i to de reprimir os mutuantes
que se precipitem irresponsavelmente em operações temerárias de concessão de crédito.
Sem prejuízo das disposições vigentes em matéria de risco de crédito no domínio do
acesso à actividade das instituições de crédito e sociedades f‌i nanceiras e ao seu exercí-
cio, que se consagram em cada um dos ordenamentos jurídicos mercê também de uma
directiva editada neste particular, os dadores de crédito deverão ser responsáveis por
verif‌i car, individualmente, em concreto, as condições de solvabilidade do consumidor
que se habilite a um qualquer contrato. Para o efeito, há que facultar-se-lhes o acesso a
acervos de informação (bancos, bases de dados) que ref‌l ictam o perf‌i l do consumidor
e aos elementos que o próprio consumidor carreie não só aquando dos preliminares
negociais, como ainda na vigência de relações contratuais duradouras, continuadas ou
continuativas, como são as do estilo.
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Às autoridades de supervisão, em cada um dos Estados-membros, cumprirá ainda
emitir instruções e orientações adequadas aos dadores de crédito de molde a que a
irresponsabilidade não campeie e se sofreiem implacavelmente eventuais manifestações
nesse sentido.
Um voto se consigna nos consideranda da Directiva, a saber, o de que os consumi-
dores ajam com prudência e respeitem as obrigações contratuais a que se adscreverem. O
que, de resto, se af‌i gura estulto, a menos que o direito haja perdido a coactividade que,
como ordem normativa, se lhe reconhecia.
Conquanto tais directrizes se não espelhem em qualquer das normas da Directiva do
Crédito ao Consumidor, constituindo meras intenções ínsitas nos considerandos, vale
dizer, no preâmbulo do instrumento de que se trata (que os Estados-membros acatarão
ou não), cumpre signif‌i car que o Estado Português dotou o ordenamento de regras que
absorvem ou assimilam tais propósitos, sujeitando a coimas, vale dizer, a sanções com
tradução patrimonial (substancialmente elevadas) as violações que entretanto se detec-
tarem.
Repare-se no que se def‌i ne no art.º 10.º do diploma legal derivado (DL 133/2009, de
2 de Junho) em que se consubstanciou em Portugal a transposição do texto europeu,
sob a epígrafe “dever de avaliar a solvabilidade do consumidor”, susceptível de se
traduzir” do modo que segue:
Em momento anterior ao da celebração do contrato, cumpre ao credor ava-
liar a solvabilidade do consumidor, tanto pelos dados por este carreados, como
pela consulta, que se tem por imperativa, à Central de Responsabilidades de Cré-
dito na dependência do Banco Central, vale dizer, do Banco de Portugal, no caso.
O credor pode, complementarmente, proceder à avaliação da solvabilidade
do consumidor pela consulta da lista pública de execuções ou de outras bases de
dados consideradas para o efeito de todo imprescindíveis.
Em caso de rejeição do crédito requerido com base nos dados obtidos, deve
o dador informar o consumidor imediata, gratuita e justif‌i cadamente do facto,
bem como dos elementos constantes das bases consultadas, salvo se as informa-
ções daí decorrentes forem proibidas por disposição do direito da União Euro-

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