O regime do contrato de seguro de saúde no direito português

AutorFrancisco Luís Alves
CargoMestre e Doutorando em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Director do Departamento de Relações com os Consumidores do ISP
Páginas9-44
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RPDC , Junho de 2011, n.º 66
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Revista Portuguesa
de Direito do Consumo
O REGIME DO CONTRATO DE
SEGURO DE SAÚDE
NO DIREITO PORTUGUÊS1
NOTA PRÉVIA2
No presente estudo procede-se, essencialmente, à análise jurídica do seguro de saúde
em Portugal, que partindo de uma premissa de liberdade contratual (art. 405.° do Código
1 As opiniões expressas no presente trabalho não vinculam o Instituto de Seguros de Portugal.
O presente artigo foi inicialmente publicado em 2009 na Revista Fórum, n.° 27, do Instituto de Seguros
de Portugal.
2 Gostaria de deixar o meu reconhecimento para duas pessoas que com a sua disponibilidade para a lei-
tura da versão originária e discussão de alguns pontos contribuíram para o seu enriquecimento: o Professor
Doutor Pedro Romano Martinez, meu orientador do Doutoramento, e o meu colega e amigo Dr. Arnaldo
Oliveira.
Francisco Luís ALVES
Mestre e Doutorando em Direito na Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa
Director do Departamento de Relações com os
Consumidores do ISP
DOUTRINA
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Civil) tem o seu regime plasmado no Decreto-Lei n.° 72/2008, de 16 de Abril (Lei do Con-
trato de Seguro)3. A inexistência de apólice uniforme que sirva de base aos clausulados
leva a que a análise do seu regime se centre naqueles elementos.
Atendendo a que não se conhecem outros estudos que incidam exclusivamente so-
bre a vertente jurídica de seguro de saúde e em particular do regime constante da LCS,
pretende-se apenas dar um contributo para a sua análise, focando-se os aspectos mais
relevantes na legislação geral e os especif‌i camente relacionados com a contratação, vigên-
cia, conteúdo e cessação do seguro de saúde.
I. ENQUADRAMENTO PÚBLICO E PRIVADO
1. A protecção da saúde
1.1. O Estado tem como incumbência a protecção da saúde4, sendo esta efectuada
nos dias actuais tanto através do Serviço Nacional de Saúde5 como através de um serviço
privado. É no serviço privado de saúde que os seguros ganham relevo, devido aos custos
associados a esses serviços6, co-f‌i nanciando tais custos e, portanto, tornando menos difí-
cil a sua utilização.
O Serviço Nacional de Saúde português é universal e geral e entendemos que os
3 Referência a preceitos legais sem indicação da Lei a que pertencem signif‌i ca que se está a mencionar a
LCS (Decreto-Lei, n.° 72/2008, de 16 de Abril) em particular o Regime Jurídico do Contrato de Seguro que
encontra em anexo ao Decreto-Lei.
4 O artigo 25.°, n.° 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos já antes da Constituição Portuguesa
dispunha que: «Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suf‌i ciente para lhe assegurar e à sua família a
saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica
e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na
invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias
independentes da sua vontade». O artigo 35.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que
tem o mesmo valor de Tratado, dispõe também no sentido que «todas as pessoas têm o direito de aceder à
prevenção em matéria de saúde e de benef‌i ciar de cuidados médicos, de acordo com as legislações e práticas
nacionais. Na def‌i nição e execução de todas as políticas e acções da União é assegurado um elevado nível de
protecção da saúde humana».
5 Que adiante designaremos de forma abreviada por SNS.
6 Sobre o mercado de seguros de doença e os vários tipos de cobertura, V. INSTITUTO DE SEGUROS DE
PORTUGAL, Relatório do Sector Segurador e Fundos de Pensões, Lisboa, 2002, págs. 173 a 181.
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seguros vêm efectuando um trajecto de alargamento de cobertura7 no mesmo sentido,
atendendo ao número de pessoas seguras abrangidas, que em 2007 já eram cerca de dois
milhões8.
Onde o SNS seja insuf‌i ciente, os serviços privados9 podem complementar. Será a jun-
ção destes dois serviços que faz a universalidade da protecção da saúde, já que caso as
pessoas que estão abrangidas por um contrato de seguro de saúde recorressem unica-
mente ao SNS, provavelmente agravaria as dif‌i culdades10 em períodos de espera e a pro-
tecção efectiva da saúde dos portugueses.
Segundo O.D.DICKERSON, uma má protecção da saúde produz dois tipos de perdas
f‌i nanceiras. A perda relativamente à saúde da própria pessoa e inerentes gastos para a
recuperação e aquilo que deixa de produzir por afectar a capacidade de trabalho11. Daí
que uma boa protecção da saúde tenha essa dupla vantagem, proteger a própria pessoa
e contribuir para o bem geral12.
1.2. O artigo 64.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa13 f‌i xa os limites e
o âmbito da protecção da saúde. O primeiro elemento a reter é que para além de todos
terem o direito à protecção da saúde, também há um dever de a defender e promover.
7 Como assinala RAFAEL URRIOLA URBINA os processos de reforma dos sistemas de saúde estão em marcha
em todo o mundo. Cfr. Sobre o papel dos seguros na saúde Financiamento y equidade en salud: el seguro
público chileno, Revista de la Cepal, n.° 87, Dezembro de 2005, págs. 61 a 77.
8 V. Estatísticas de seguros no portal do ISP, em www.isp.pt, onde o ramo doença aparece com 1 897 640
pessoas seguras.
9 Sobre o sector privado como alternativa ao sector público, V. MANUEL ANTUNES, A Doença da Saúde,
3ª Edição, Quetzal Editores, Lisboa, 2001, págs. 53 a 59.
10 Sobre a insatisfação com o SNS como factor para a contratação de seguros privados de saúde,
nomeadamente ao nível das listas de espera, V. JOAN COSTA e JAUME GARCIA, Demand for private health
insurance: is there a quality gap?, Economics and Business working papers series, 2001, em http://www.
recercat.net/handle/2072/676 (recolhido em Maio de 2009).
11 V. do autor, Health insurance, Richard D. Irwin, Inc, Illinois, 1959, pág. 5.
12 É por isso referido na obra de FRANÇOIS EWALD e JEAN-HERVÉ LORENZI, Encyclopédie de l’Assurance,
Economica, Paris, 1998, pág. 612, que «o risco de saúde é hoje em dia um risco político, um risco politizado,
um risco que implica a intervenção do poder público».
13 Sobre o artigo 64.° da CRP V. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada,
Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, págs. 650 a 662; e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIR A,
Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra,
2007, págs. 823 a 831.

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