Serviços públicos essenciais: públicos ou privados? Uma perspectiva comunitária
Autor | J. Pegado Liz |
Cargo | Advogado. Membro do CESE (Bruxelas) em representação dos consumidores |
Páginas | 13-79 |
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RPDC , Março de 2015, n.º 81
RPDC
Revista Portuguesa
de Direito do Consumo
DOUTRINA
SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS:
PÚBLICOS OU PRIVADOS?
UMA PERSPECTIVA COMUNITÁRIA
Em singela homenagem a
Manuel Cabeçadas Atahyde Ferreira
Alguém que soube interpretar, como nenhum outro, na
sua vida privada e na sua actividade prossional, o que
é uma missão de serviço público em prol da defesa dos
consumidores.
J. PEGADO LIZ
Advogado
Membro do CESE (Bruxelas) em representação
dos consumidores
RPDC , Março de 2015, n.º 81
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1. Introdução. Algumas noções fundamentais
Antes de mais é preciso recordar que, desde os Tratados iniciais da CEE, alguns
princípios fundamentais denem com clareza certos aspectos fundamentais do quadro
jurídico comunitário em que se insere a questão dos serviços públicos e que por vezes
parecem ser esquecidos ou claramente deturpados
Desde logo a inequívoca armação de que
“Os Tratados em nada prejudicam o regime da propriedade nos
Estados-Membros. (art. 345 do TFUE)”.
Depois, a não menos importante a armação clara de que
“as competências que não sejam atribuídas à União nos Tratados
pertencem aos Estados-Membros (art. 4 n.° 1 TUE)”.
E que, apesar da indiscutível supremacia do direito da União sobre os direitos
nacionais,
“A União respeita a identidade nacional (dos estados membros),
reectida nas estruturas políticas e constitucionais fundamentais de
cada um deles, e… as funções essenciais do Estado (art. 4 n.° 2 TUE)”.
Além de que, por força da integração da Carta dos Direitos Fundamentais da UE
no TUE, com o mesmo valor jurídico (art. 6 n.° 1 do TUE), o seu art. 17 estabelece a
inviolabilidade do direito de propriedade, como direito fundamental, salvo causa de
utilidade pública prevista em lei.
Finalmente, e no que respeita em geral aos serviços denidos no TFUE como “as
prestações realizadas normalmente mediante remuneração, na medida em que não
sejam reguladas pelas disposições relativas à livre circulação de mercadorias, de
capitais e de pessoas” (art. 57), o objectivo da sua progressiva liberalização ca, no
entanto, dependente de “a situação económica geral e a situação do sector em causa
(dos Estados-membros) lho permitirem” e, mesmo assim só na medida em que as
respectivas actividades não “estejam ligadas, mesmo ocasionalmente, ao exercício
da autoridade pública” (arts. 51 e 62 do TFUE).
Isto para concluir, sem sombra de dúvida que, ao contrário do que se houve dizer com
frequência, a União Europeia não dene qualquer posição quanto ao que deve ser
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publico ou privado em cada estado membro, nem qualquer orientação quanto aos
princípios da denição de um qualquer modelo padrão para o que os estados membros
consideram, segundo as suas respectivas Constituições, serem as funções da autoridade
pública e o seu especíco conteúdo.
Tal matéria é assim deixada inteiramente ao domínio da competência exclusiva
e não partilhada e, menos ainda, cedida à União Europeia.
Ao contrário, a distinção entre serviços públicos essenciais e não essenciais não
existe no direito comunitário. A distinção que emerge dos textos comunitários é entre
serviços de interesse económico geral e serviços de interesse social que será o que
mais se aproxima da noção de serviços públicos essenciais.
Mas, ainda aqui, o direito comunitário não dene o conteúdo daquela noção,
deixando-a para os estados membros. Apenas a jurisprudência comunitária avança com
alguma ideia de conteúdo, a saber - as actividades não económicas relacionadas com
o exercício de prerrogativas do Estado (onde inclui as forças armadas e a policia,
o controle e a segurança do tráco aéreo e marítimo, a justiça penal, o nanciamento
e a supervisão das infra-estruturas ferroviárias e a defesa e protecção do ambiente,) e
as actividades cuja natureza é exclusivamente social (como a gestão dos sistemas
de seguro obrigatórios que prosseguem uma nalidade exclusivamente social, o sistema
básico de educação pública, a segurança social e os serviços nacionais de saúde)1.
2. Os serviços públicos e os serviços de interesse geral: uma diferença conceptual
A) O serviço público «à francesa»
A noção de serviço público como a conhecemos e ainda praticamos entre nós,
embora já muito adulterada, tem origem francesa e é perfeitamente datada em dois
momentos históricos:
a) Nos começos do século XX, com o reforço dos poderes do estado e o
1 Para uma súmula das decisões do Tribunal de Justiça nesta matéria, ver “Commission Staff Working
Document accompanying the Communication on “Services of general interest: a new European
commitment” (SEC(2007)1516 nal de 20.11.2007)”.
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