A proteção do sobreendividado no Brasil à luz do direito comparado

AutorFlávio
1. Introdução

O fenômeno social do sobreendividamento no Brasil não tem recebido dos poderes constituídos - Legislativo, Executivo e Judiciário - a necessária atenção, deixando ao desamparo milhões de consumidores aflitos que não têm possibilidade de pagar suas dívidas atuais e futuras.

Os órgãos de defesa do consumidor e os sítios da internet que acolhem reclamações dos consumidores acumulam depoimentos impressionantes de pessoas desesperadas, multiendividadas, que acumulam dívidas e sofrem restrições de crédito, suspensão de serviços públicos essenciais, enfrentam problemas de impontualidade das mensalidades escolares e administram de forma caótica as cobranças dos credores.

Grande parte dos sobreendividados é vítima de um “acidente da vida”, em razão do desemprego, de doença, de morte de um arrimo de família, de separação ou divórcio, de sinistros que levam à incapacidade total ou parcial, causas que privam a família de parte significativa da fonte de renda, impedindo o pagamento das dívidas e despesas fixas mensais do orçamento doméstico.

O acesso ao crédito fácil, a falta de informação e de educação para o consumo, a publicidade agressiva, o desejo de consumo de produtos e serviços oferecidos através de uma publicidade sugestiva, fazem com que os consumidores se endividem progressivamente até deixarem de ter capacidade de honrar seus compromissos, sendo “lançados” no sobrendividamento, o que significa a “impossibilidade global do devedor pessoa-física, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo” (Marques, Claudia Lima, 2006)1.

O presente trabalho analisa o grave fenômeno social do sobreendividamento do consumidor e empresta um enfoque multidisciplinar que visa alcançar todas as formas de tutela e remédios ao alcance dos consumidores para alívio dos sobreendividados, cuja proteção não se limita à existência ou não de Lei específica de tratamento do sobreendividamento. O trabalho exalta a importância de se ampliar o espectro de proteção do consumidor de boa-fé que sofre com a indigna e humilhante situação do sobreendividado, que ofusca a sua cidadania (Gaulia, Cristina, 1999):

A incapacidade de lidar o cidadão com suas dívidas, a redução de economias individuais a zero ou a patamares negativos, a inserção do consumidor nos cadastros de inadimplentes, o corte de serviços essenciais, a dependência/submissão do indivíduo ao gerente de banco, a impossibilidade de estabelecer prioridades por falta absoluta de dinheiro e crédito, a falta de opções para o pagamento parcelado dos débitos salvo os apresentados pelas instituições financeiras, conduzem a uma retração da cidadania e à uma inequívoca situação de indignidade2.

O sistema de proteção da cidadania e dignidade do sobreendividado no Brasil é desordenado e periférico, não alcançando o núcleo principal que deve assegurar a elaboração extrajudicial de um plano de renegociação e pagamento das dívidas. Tampouco garante acesso à Justiça que permita a exoneração de parte do passivo restante, para o recomeço e alívio da vida financeira do sobreendividado, livrando-o das dívidas (fresh start).

O trabalho analisa o inexpressivo uso de ações de cobrança e de execuções de fornecedores contra os devedores insolventes multiendividados e o quadro normativo que protege o sobreendividado no Brasil, com acentuado grau de intervenção do Estado, na área da defesa do consumidor e do cidadão. Os mecanismos periféricos de defesa do devedor impressionam pela variedade e profundidade, já que existem diversas formas de tutela, que são extremamente importantes para preservação da dignidade do consumidor sobreendividado, se não vejamos:

1) Proibição da penhora de salários, prevista no art.º 649 do CPC;

2) A proibição de penhora do bem de família, plasmada na Lei 8009/90;

3) Os devedores só podem ser mantidos no “ficheiro” de inadimplentes por cinco anos, nos termos do art. 43 § 1º, da Lei 8078/90;

4) Os devedores estão protegidos de eventuais cobranças abusivas e constrangedoras, pelos art. 42, § único, e art. 71, do Código de Defesa do Consumidor;

5) Vedação de débito superior a 30% do salário ou da pensão do funcionário público no crédito consignado, segundo a Lei 10.820, de 17 de Dezembro de 2003;

6) A ação revisional do art.º 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor para modificação das cláusulas que estabeleçam prestações desproporcionais ou excessivamente onerosas;

7) O processo de insolvência civil individual, regulado no Código de Processo Civil (art.ºs 748 a 785 do CPCB);

8) Os núcleos de atendimento dos sobreendividados dos Procons e das Defensorias Públicas.

Pretende-se mostrar que os consumidores brasileiros, por seu turno, não se socorrem de processos de insolvência civil individual, previstos no Código de Processo Civil (art.ºs 748 a 785 do CPCB), porque, para além da vergonha de se considerarem falidos, os sobreendividados se sentem protegidos pelo sistema defensivo periférico que se enuncia supra. Ademais, o processo brasileiro de falência individual equivale a uma execução de iniciativa do próprio devedor, com vencimento antecipado das obrigações vincendas e liquidação do seu patrimônio, sem qualquer possibilidade de exoneração de parte do passivo.

O trabalho retrata o quadro singular de inércia das instituições de crédito, das sociedades financeiras e dos fornecedores de crédito direto ao consumidor que, diante do inadimplemento do devedor, não ajuízam ações de cobrança e de execuções contra os devedores insolventes, muito embora a lei processual lhes garanta concurso universal para execução do multiendividado (art.º 751, III, do CPC).

Os agentes econômicos não são nem criteriosos nem cautelosos na prévia análise da capacidade de endividamento do consumidor. Os créditos são concedidos de forma irresponsável, sem garantia, nem lastro patrimonial do consumidor, o que torna desinteressante para o credor uma aventura judicial contra o devedor sobreendividado, em busca da recuperação judicial do crédito, mormente diante do quadro protetivo acima descrito. Portanto, se esse sistema desordenado de crédito eleva o risco para o financiador, a taxa de juros atinge níveis estratosféricos.

Muito embora o Brasil ainda não possua legislação específica que regule o sobreendividamento, a dignidade do sobreendividado está mais protegida do que em países dotados de legislação específica, mas no que se refere à possibilidade de livrá-lo das dívidas, o sistema brasileiro é falho e o consumidor sobreendividado fica impedido de lograr alívio definitivo com a exoneração do passivo remanescente.

Buscam-se, na doutrina estrangeira, parâmetros de proteção legal do sobreendividado, elegendo-se o modelo francês como perfeitamente compatível com o sistema protetivo extrajudicial e judicial do consumidor no Brasil, para então se discutir a necessidade de ampliação dessa “proteção periférica”, com a adoção de uma Lei específica que sirva e se adapte, propugnando-se especificamente a doutrina do “fresh start” para garantir ao consumidor sobreendividado uma alternativa prioritariamente extrajudicial de formulação de um plano de pagamento e de exoneração do passivo restante, em prazo razoável não superior a cinco anos.

2. Do crédito, endivimento e sobreendividamento

A existência de milhares de sobreendividados e a dificuldade de prevenção e tratamento do sobreendividamento não autorizam o observador a presumir que o crédito ao consumidor seja nocivo.

O endividamento é um processo de antecipação de rendimentos gerador de acesso ao consumo de bens e serviços e, no contexto de crescimento econômico e estabilidade do emprego, é altamente positivo para a economia. Não se pode demonizar o crédito. O crédito concede a oportunidade de se obter a posse ou propriedade de um bem ou usufruir de um serviço, sem dispor, de imediato, de rendimento necessário para suportar essa aquisição. O endividamento gerado pelo crédito garante o acesso aos bens de consumo e assegura qualidade de vida, dá acesso à habitação (investimento), gera negócios e receita fiscal e fomenta a produção e os serviços. Se o crédito significa dispor imediatamente de rendimento que não se possui, implica igualmente no comprometimento da renda futura.

A doutrina conceitua distintamente o sobreendividamento ativo e passivo como o descumprimento com culpa do consumidor ou sem...

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