Tutela do consumidor

AutorEduardo CAMBI
CargoMestre e Doutor em Direito pela UFPR
Introdução

O presente texto se destina a depurar o conceito de relação de consumo no direito brasileiro, confrontando as possíveis interpretações dos artigos 2° e 3° da Lei 8.078/90, com o escopo de buscar a exegese que assegure a maior proteção ao direito fundamental contido no artigo 5°, inc. XXXII, da Constituição Federal1.

Paralelamente, objetiva-se contextualizar o Código de Defesa do Consumidor com o direito fundamental à efetiva e adequada tutela jurisdicional (art. 5°, inc. XXXV, CF), analisando os instrumentos processuais sob a égide do dever de proteção dos direitos do consumidor.

Procura, ainda, examinar as respostas que o Poder Judiciário vem dando, ao longo da história recente aberta pela Lei 8.078/90, às questões consumeristas.

1. Relação de consumo

A relação de consumo é, antes de qualquer definição, uma relação jurídica e, assim, deve ser conceituada como "como um vínculo entre pessoas, em virtude do qual uma delas pode pretender algo a que a outra está obrigada" (Savigny)2.

Para se saber o que é relação de consumo, é imprescindível analisar quais são os elementos formadores da relação jurídica, isto é, os sujeitos (ativo e passivo), o vínculo de atributividade e o objeto3.

Na relação de consumo, sujeito ativo é o consumidor, titular de situações jurídicas ativas protegidas pelo Código de Defesa do Consumidor, e passivo, o fornecedor, o qual possui deveres jurídicos, traduzidos em condutas ou prestações, a serem prestadas em benefício do consumidor.

O vínculo de atributividade são os parâmetros normativos e contratuais que conferem aos sujeitos da relação jurídica o poder de pretender ou exigir algo determinado ou determinável4. Na relação consumerista, assume enorme relevância, entre outros, o artigo 1° da Lei 8.078/90, ao estabelecer, com fundamento nos artigos 5°, inc. XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e do artigo 48 das suas Disposições Transitórias, um conjunto de regras protetivas ao consumidor.

O objeto da relação de consumo, como se depreende dos artigos 2° e 3° do Código de Defesa do Consumidor, pode ser tanto um produto quanto um serviço.

Considerando que os direitos do consumidor são direitos fundamentais (art. 5°, inc. XXXII, CF), os quais possuem dimensão objetiva de proteção, isto é, impõe ao Estado (Legislativo-Executivo-Judiciário) deveres de proteção5.

Esta perspectiva tem se mostrado importante à luz do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 5°, inciso XXXV, da Constituição Federal, porque exige do processualista a criação de técnicas processuais adequadas à realização dos direitos do consumidor, bem como vincula o Estado-Juiz, cuja atuação deve estar voltada à maior efetivação destes direitos6.

Portanto, saber o que é relação de consumo interessa não só o estudioso do Direito Material. Afinal, a partir da perspectiva metodológica da instrumentalidade do processo, a necessária compreensão do processo a partir do direito material passou a ser o norte do processualista e de todos aqueles que discutem e aplicam os direitos do consumidor em juízo. Sem saber o que é relação de consumo, não é possível identificar as partes, a causa de pedir e o objeto da relação processual. Esta preocupação não se reflete apenas nos elementos ou mesmo nas condições da ação, mas, o que é mais grave, na não aplicação de técnicas processuais voltadas à efetivação dos direitos do consumidor.

A Lei 8.078/90 é um manancial fecundo de regras protetivas do consumidor, mas de alcance restrito às relações específicas de consumo. Por isto, normas processuais diferenciadas (como a inversão do ônus da prova, previsto no artigo 6°, inc. VIII e a invalidade da cláusula de foro de eleição, constante do artigo 51, inc. IV, todos do CDC) poderiam, em tese7, serem excluídas de outras relações processuais.

O texto, contudo, se limita a definir relação de consumo, sem se preocupar com aspectos específicos do direito processual. No entanto, sem antes saber o que é relação de consumo, seria logicamente impossível verificar se as normas protetivas da Lei 8.078/90 seriam ou não aplicáveis aos casos concretos.

2. Conceito de consumidor (art 2°/CDC)

Pelo artigo 2° do CDC, consumidor "é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final".

"Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo" (Parágrafo único).

O Código de Defesa do Consumidor apresenta quatro conceitos distintos de consumidor, os quais merecem análise singular.

2.1. Conceito padrão

Pelo artigo 2°, caput, do CDC, consumidor é toda a pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Inicialmente, é preciso ter claro que o destinatário final pode ser tanto aquele que adquire o produto ou o serviço, quanto o que o utiliza ou consome, mesmo não o tendo adquirido. Por exemplo: i) se alguém compra cerveja para oferecer aos amigos, em uma festa, e a garrafa explode e atinge o convidado; este, ainda que não tenha adquirido o produto, será considerado consumidor8; ii) os convidados de uma festa de casamento que, ao comerem a comida, intoxicam-se são destinatários finais, embora não tenham adquirido os alimentos.

11.280/2006 modificou os artigos 112, par. ún., e 114 do Código de Processo Civil para possibilitar que o magistrado, de ofício, decrete a sua nulidade, quando verifica a vulnerabilidade do demandado e a dificuldade que a cláusula traz ao acesso à justiça. Cfr. Teresa Arruda Alvim Wambier, Luiz Rodrigues Wambier e José

Miguel Garcia Medina. Breves comentários à nova sistemática processual civil. Vol. 2. São Paulo: RT, 2006. Pág. 17-24.

Mais complexo é definir o sentido da expressão destinatário final, que varia conforme a teoria (finalista ou maximalista) que se adote.

Pela Teoria Finalista ou Subjetiva, é destinatário final todo aquele que não é intermediário no ciclo de produção.

Em outras palavras, o destino final é aquele para o uso próprio, privado, individual, familiar ou doméstico9. Não está incluído, neste conceito, aquele que funciona como intermediário, ou seja, compra com o objetivo de revender, após montagem, beneficiamento ou industrialização.

Com efeito, a operação de consumo deve encerrar-se no consumidor que utiliza ou permite que o bem ou o serviço seja utilizado sem revenda (v.g., é consumidor quem compra um computador para usar em sua casa, e não é consumidor o aquele que compra computadores no exterior, para revendê-los no Brasil).

Neste último exemplo, a pessoa que compra os computadores, para revendê-los, não é destinatário final, mas intermediário do ciclo de produção, não estando tutelado pelo Código de Defesa do Consumidor, mas sim pelo Código Civil.

A teoria finalista visa a atender à finalidade política do Código de Defesa do Consumidor, isto é, a tutela da parte vulnerável na relação de consumo.

A teoria maximalista, por sua vez, se opõe à finalista, considerando que o revendedor, o distribuidor e o montador estariam todos inseridos na cadeia de consumo e, portanto, submetidos à aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Esta teoria não leva em consideração à vulnerabildiade, considerando suficiente à mera destinação fática10.

O conceito de consumidor, contido no artigo 2° da Lei 8.078/90, segundo os autores do anteprojeto, deve restrito aquele que não reintroduz, de qualquer forma, o produto no mercado de consumo (logo, se o advogado compra o computador, para uso pessoal, é consumidor; se o adquire para o trabalho, é fornecedor, aplicando-se, neste caso, o direito comum)11. Portanto, o consumidor é o elo final da cadeia de consumo, destinando-se o bem ou o serviço à sua utilização própria ou pessoal, não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial ou profissional12. Desta maneira, protege-se o bem de consumo, não o bem de produção, embora o Código de Defesa do Consumidor não faça esta distinção.

No direito estrangeiro, também se tem buscado restringir o conceito de consumidor. No direito italiano, a Lei 281, de 30 de julho de 1998, que "disciplina os direitos dos consumidores e dos usuários", afirma, no artigo 2°, 1, "a", serem "consumidores e usuários: as pessoas físicas que adquirem ou utilizem bens ou serviços com objetivos não referentes à atividade empreendedora e profissional eventualmente desenvolvida" 13. No mesmo sentido, pode se depreender do Anteprojeto de Código do Consumidor português, pelo qual, no artigo 10°, 1: "Considera-se consumidora pessoa singular que actue para a prossecução de fins alheios ao âmbito de sua actividade profissional, através do estabelecimento de relações jurídicas com quem, pessoa singular ou colectiva, se apresenta como profissional".

No entanto, o conceito-padrão de consumidor não pode se afastar dos parâmetros constitucionais.

O artigo 4°, inc. III, da Lei 8.078/90 afirma que a "Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção dos interesses econômicos, a melhoria das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (...) III harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da CF), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores".

Com...

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